31 de dez. de 2010

Feliz ano novo... de mentira.

(...)

A vida está cheia de rituais para exorcizar a Morte. Agora, quando escrevo, dia 3 de janeiro, acabamos de passar por dois deles. É claro que não lhes damos esse nome, pois o seu sucesso depende de que o Nome Terrível não seja ouvido. Para isso se faz uma barulheira enorme de sinos, fogos de artifício, danças, risos, muita comida, e alegria engarrafada... E tudo isso só para que a voz Dela não seja ouvida... Natal não é isso? Não existe uma tristeza solta no ar? O esforço desesperado de repetir um passado, fazer com que ele aconteça de novo?
Encontrei, certa vez, numa loja nos Estados Unidos, um pacotinho de ervas e temperos num saquinho de plástico com o nome: "perfumes de Natal". Tem que ser aqueles cheiros antigos, de infância. As músicas novas não servem, é preciso que as mesmas dos outros tempos sejam cantadas de novo. E que haja o mesmo rebuliço, os mesmos bolos, as mesmas frutas. Prepara-se a repetição do passado para ter a ilusão de que o tempo não passou.
Melhor o incômodo da correria e da ressaca do que a dor de ouvir o que Ela está silenciosamente dizendo: "É, mas o tempo passou. Não pode ser recuperado. Você está passando...". Pensar dói muito. O Natal dói muito... E saímos da depressão da perda por meio de um outro ritual. Tolice imaginar que o tempo passou. Que nada. É um novo tempo que vem. Há muito tempo à espera. "Feliz Ano Novo". E, no entando, é tudo mentira.

ALVES, Rubem. O Médico. 4.ed. Campinas, SP: Papirus Editora. 2003. p.65-67.