27 de jan. de 2011

Elas X Deus

Olá.
Colocar Lispector e Adélia Prado no mesmo dia e respectivos fragmentos de suas obras foi proposital. Cleiton.

Fragmentos literários: A maçã no escuro

Era tão escuro como se eu procurasse o hotel e não soubesse onde ele ficava, a única coisa tocável era o livro na mão - o medo, o medo de que o senhor me acusou, não me deixava um movimento, mas depois que passou a surpresa - então rebentou o que eu mal e mal tinha contido até aquele instante - a beleza da praia rebentou, a linha fina do horizonte rebentou, a solidão a que eu tinha voluntariamente chegado rebentou, o balanço da barca que eu tinha achado bonito rebentou, e rebentou o medo da intensidade de alegria que sou capaz de atingir - e sem poder mais mentir, chorei rezando no escuro, rezando assim "nunca mais isso, oh Deus nunca mais me deixe ser tão audaciosa, nunca mais me deixe ser tão feliz, tire para sempre a minha coragem de viver; que eu nunca vá tão adiante em mim mesma, que eu nunca me permita, tão sem piedade, a graça", porque eu não quero a graça, pois antes morrer sem ter jamais visto que ter visto uma só vez! porque Deus com sua bondade permite, ouviu, permite e aconselha que as pessoas sejam covardes e se protejam, Seus filhos prediletos são os que ousam mas Ele é severo com que ousa, e é benevolente com que não tem coragem de olhar de frente e Ele abençoa os que abjetamente tomam cuidado de não ir longe demais no arrebatamento e na procura da alegria, desiludido Ele abençoa os que não têm coragem.
Ele sabe que há pessoas que não podem viver com a felicidade que há dentro delas, e então Ele lhes dá uma superfície de que viver, e lhes dá uma tristeza, Ele sabe que tem pessoas que precisam fingir, porque a beleza é árida, por que é tão árida a beleza? e então eu disse para mim "tenha medo, Vitória, porque ter medo é a salvação". Porque as coisas não devem ser vistas de frente, ninguém é tão forte assim, só os que se danam é que têm força. Mas para nós a alegria tem que ser como uma estrela abafada no coração, a alegria tem que ser apenas um segredo, a natureza da gente é o nosso grande segredo, a alegria deve ser como uma irradiação que a pessoa jamais, jamais deve deixar escapar. Sente-se um estilhaço e não se sabe onde: é assim que tem que ser a alegria: não se deve saber o por quê, deve-se sentir assim: "mas que é que eu tenho?" - e não saber. Embora quando se toque em alguma coisa, essa coisa brilhe por causa do grande segredo que se abafou - eu tive medo, porque quem sou eu sem a contenção? Quando no dia seguinte eu estava sentada na barca eu pensava que tinha morrido. Mas como se tivesse, antes de morrer, comungado. (LISPECTOR, p.237,238)

LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Círculo do Livro S.A. São Paulo.

PS. A palavra "senhor" logo no ínicio, está se referindo ao outro personagem da obra, chamado, Martim. E não à Jesus Cristo.

Fragmentos literários: O homem da mão seca

O doutor ralhou comigo quando chamei minhas dificuldades de minhas doenças. É um processo, dona Antônia. Doença, processo, foi um estado de paralisia sufocante que me fez ir atrás de seus serviços. Me dei conta quando rezava: "Seja feita a Vossa vontade." Estranhei como nunca. Não. Isto, não. Maior que eu não dou conta de ser. Até então fora só lábios fluentes e a minha força, a força da minha língua guardando a culpa e o pecado como uma posse, um poder contra Ele. Foi Clara quem me instruiu sobre a coisa satânica. Não escrevo mais poéticas, não sou criatura, sou como Vós, lábios in-fluentes e língua sem força. Deus não é humano, Deus não sabe escrever, e eu que aprendi não queria fazê-lo, pois queria ser deus. Ele não sabe, faço por Ele, pratico o crime que à falta de outro nos redimirá aos dois de nossas tão diversas condições. Sim, sim, cada vez mais é assim que a compreendo, a vontade divina. Esta é a pobreza, a vontade divina governando minha vida. Pensamentos vêm aos borbotões: de que é em mim que Ele repousa seu Espírito, de que o bem compete a mim, ainda que Ele não peque, de que sou puro pecado e Ele sente culpa em mim, de que, como não me separo d´Ele hora nenhuma, fica parecendo que a culpa é minha, de que a quadratura do círculo é questão teológica, de que a física está prestes a intuir a Trindade, de que se não tivermos culpa real não há sentido em falar em salvação, de que sou deus, de que não sou deus, de que se o homem perder-se deus está perdido. Se "a criação foi sujeita à vaidade não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou", segue que Clara e o apóstolo Paulo estão dizendo a mesmíssima coisa. E mais: "Deus endurece a quem quer." Não sou eu quem o diz. "A carne não se submete à lei do Senhor; nem o pode." Se "o Espírito mesmo intercede por nós", Deus se salva a Si próprio quando me salva. Qual é meu pecado, então? A física entender a Trindade, Clara disse que vai demorar, porque agora é que chegamos ao telefone celular. E fax, que todo o mundo acha o máximo, é muito discursivo pra seu gosto. O que o homem faz é desinventar o mundo, criá-lo às avessas, o deusinho gabiru: pica,separa, corta, depois ajunta de novo e fala oooooh! Inventei o radar, chegamos ao periscópio, que parece uma pessoa muito alta na multidão virando o pescoço pra cá e pra lá, muito engraçado o periscópio, muito pobrezinho ele. Mas a visão já está inventada, e o que se vai ver, também. Tudo já está feito, o homem desfaz, pensando que faz, para ver o já feito. Vamos acabar com a canseira de preservar as graminhas e a floresta amazônica, vamos direto ao assunto: a culpa é nossa mesmo. Jesus, o pobre de Yahvé, é nos relatos quase impaciente. Não se precisa ir a inaugurações e responder cartas. Já está tudo perfeito, nada mais a fazer. (PRADO, p.57,58)

PRADO, Adélia. O homem da mão seca. Rio de Janeiro: Record, 2007.