Paulo Perdigão conseguiu fazer uma síntese muito bem feita sobre a teoria sartriana.
Introdução
Sartre e a Fenomenologia
Ao estudar em Berlim (1933/1934) o método da fenomenologia, criado no inicio do século por Husserl – e que viria a constituir o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século XX -, Sartre constatou que esse sistema de investigação correspondia às suas exigências de um sistema voltado para a realidade concreta do cotidiano*. Todos os trabalhos iniciais de Sartre obedecem às premissas do método. A grande síntese dessa primeira fase da obra sartriana que é O Ser e o Nada subintitula-se mesmo Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Já a partir do titulo, o livro constitui uma espécie de resposta ao principal tratado de Heidegger, Ser e Tempo (1927), que foi dedicado a Husserl.
Mas, embora empregando a terminologia de Heidegger e Husserl, Sartre não foi mero discípulo desses pensadores: pelo contrário, O Ser e o Nada é, com freqüência, uma contestação à filosofia de Heidegger e uma crítica a Husserl, como veremos adiante. Por ora, limitemo-nos a enumerar os principais pontos da fenomenologia que Sartre endossou.
Em linhas gerais, Husserl insurgiu-se contra um enano teórico que sempre predominou nas ciências humanas em geral: a separação radical entre a consciência do sujeito (em latim, res cogitans: o ser pensante) e o mundo exterior (res extensa: o ser material), consideradas até então como entidades distintas e heterogêneas. Ou bem privilegiava-se a exterioridade das coisas, a chamada "realidade objetiva", em detrimento da razão humana (postura dominante em geral no pensamento científico), ou bem, ao contrário, dava-se ênfase à interioridade da mente, a chamada "subjetividade" (posição frequente em filosofia). Daí as duas linhas básicas do pensamento humano: o Materialismo e o Idealismo. Para Husserl, contudo, acatar tal dualismo é ser unilateral e insuficiente, porque a realidade é outra: o ser humano vive em uma unidade indivisa de mente-corpo-mundo e assim deve ser estudado.
Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, surprimiu todos os conceitos de antemão dados como "verdades estabelecidas" sobre as coisas. É preciso "voltar às próprias coisas", ou seja, descrever os fatos em sua essência. Quando os filósofos falam em "tempo", "consciência", "imaginação", "trabalho" etc, pressupõem já o pleno entendimento dessas essências, mas o importante é justamente saber o que elas são. Por exemplo: sei que aquilo que experimento tendo este livro frente aos meus olhos é uma "percepção". Assim, dá-se por evidente por si mesmo o que é "percepção", quando precisamos é saber o que é isso, qual a essência da percepção. Daí porque a fenomenologia é chamada de ciência eidética (do grego eidos: "essência"). Em outras palavras, em geral só se entende as coisas superficialmente: o ser humano dá como "já sabido" precisamente aquilo que ainda precisa ser elucidado.
Husserl propôs esse "retorno às coisas mesmas" para contestar o positivismo (linha filosófica que defende a primazia do conhecimento pela ciência) precisamente em uma época, o início do século, em que as próprias "verdades eternas" da ciência eram refutadas com o surgimento da teoria da relatividade, das geometrias não-euclidianas e da teoria dos quanta. Disse Husserl: "Tudo o que se tem por evidente não é mais do que preconceito. Todos os preconceitos não são mais do que obscuridades vindas de uma sedimentação da tradição".
Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as "especulações metafísicas" comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam a respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) "visões do mundo" que apenas refletem as idéias de um único pensador. Seguindo de perto esse princípio, a filosofia sartriana não nos diz "como a vida deve ser vivida", nem pergunta "por que o homem existe": limita-se a descrever o que a vida é, que tipo de Ser o homem é.
Outra premissa fenomenológica é a de que o investigador deve ater-se à descrição da existência concreta, captando o homem no seu cotidiano. Um exemplo muito simples - seja a menção de um hábito, ou uma conduta que adotamos regularmente - é capaz de, estudado em sua essência, revelar mais sobre a realidade humana do que a metafísica tradicional dos filósofos que se isolam do mundo, a criar castelos de belas idéias cheias de fantasias. Os livros de Sartre estão repletos de imagens cotidianas: um jogo de tênis, o trabalho de um garçom, uma fila de ônibus, a reunião de um grupo de manifestantes de rua. Em Sartre a filosofia coloca os pés na terra, prendendo-se à vivência da realidade. "Meu objetivo - frisou - é entender o abstrato concretamente". O homem de Sartre é um homem situado em nosso mundo, com nossos problemas e conflitos de todos os dias, e não uma idéia abstrata que só existe na mente dos pensadores. É por isso que em geral todo leitor da filosofia sartriana é capaz de reconhecer-se nela de corpo inteiro.
Outro dado básico da fenomenologia: a tarefa principal do filósofo consiste em investigar a atividade da consciência e discutir as origens e os fundamentos do pensar. Não seria possível descrever as essências a partir da nossa experiência cotidiana sem colocarmos no centro desse campo de pesquisa a nossa própria subjetividade individual. O filósofo não deve adotar um ponto de vista exterior ao mundo, como se estivesse instalado como espectador a contemplar de fora a existência, na qual está atolado: isso é o mesmo que assumir a utópica visão de um pássaro a sobrevoar a terra.
Assim, é pelo prisma da subjetividade que o filósofo deve descrever o campo objetivo circundante. Sua primeira missão será descrever a própria consciência, e, do subjetivo, chegar ao objetivo, do particular chegar ao geral. "A subjetividade do indivíduo é o ponto de partida do existencialismo", disse Sartre. Mais tarde, em uma perspectiva marxista, acrescentaria: o projeto individual é o fundamento de toda ação comum de grupo. Essa ênfase na razão subjetiva, que percorre toda a obra de Sartre, reflete a fidelidade do filósofo ao cogito, ergo sum ("penso, logo existo") do francês René Descartes (1596- 1650): é pelo fato de podermos pensar que podemos saber que existimos**. Ao contrário, sem a nossa consciência, o mundo objetivo nada significaria, já que se auto-ignora como existente.
Além disso, há que se aproveitar de um privilégio menosprezado pela quase totalidade dos pensadores antes de Husserl: o fato de sermos o único tipo de Ser capaz de colocar o seu próprio ser em questão em si mesmo. "O existente que analisamos é o existente que somos", disse Heidegger. O objeto da investigação (a realidade humana) consiste no próprio investigador. Logo, podemos examinar de perto aquilo que está mais diretamente ao nosso alcance: a nossa subjetividade. Em vez de começar interrogando a existência impessoal do mundo, o filósofo deve voltar-se antes de tudo para si mesmo, tornando-se assim, simultaneamente, o investigado e aquele que investiga.***
Podemos então entender por que o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) é tido como precursor de Husserl, Heidegger e Sartre. Havia Kierkegaard reagido contra a doutrina do alemão Hegel (1770-1831), que, a seu ver, falava idealisticamente de um mundo transcendental, utópico, fazendo suas palavras atuarem qual passes de mágica em um universo de possíveis. Perguntava Kierkegaard: que me interessa admitir, como fez Hegel, que os conflitos das idéias através da História conduzirão um dia ao Saber Absoluto, à perfeição da razão humana, à eterna glória do Espírito, se esse esplendorosa era virá no final dos tempos, enquanto eu só conhecerei minhas dores e alegrias, e o enigmático silêncio da morte? Antes de qualquer marcha inexorável do Espírito para um porvir magnificente, existe a minha presença no mundo, sem a qual esse mundo não poderia fazer nenhum sentido para mim, e existem os meus sentimentos, as minhas angústias, a minha maneira de ser e estar nesse mundo. Kierkegaard foi o primeiro a mostrar que a vida de um homem, pelo fato mesmo de ser vivida, experimentada subjetivamente, com suas paixões e sofrimentos, não pode ser absorvida por uma idéia universal, nem pode ser compreendida ou assimilada por um sistema de idéias exterior a ela.
Esse aspecto da obra de Kierkegaard, o método fenomenológico de Husserl e a ontologia de Heidegger - não se esquecendo o "penso" de Descartes - surgem sintetizados e debatidos na doutrina de Sartre e são, em suma, os elementos que ele empregará, na segunda fase de sua obra, para ativar e renovar o marxismo.
* Segundo Simone de Beauvoir, foi Raymond Aron quem alertou Sartre para o método de Husserl, que estudara em Berlim. Os três bebiam em um bar de Paris, em 1931, quando Aron apontou o seu copo. “Estas vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia”. Lembra Simone: “Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava há anos – falar das coisas tais como as tocava, e que isso fosse filosofia”.
** Posso pôr em dúvida a existência real do mundo e até de mim mesmo, dizia Descartes. Duvido de tudo, mas só não posso duvidar de que duvido. Quanto a isso, tenho absoluta certeza. Portanto, estou certo de que duvido. Logo, estou certo de que penso, e, conseqüentemente, existo.
*** Isso não significa que o existencialismo sartriano seja uma filosofia subjetivista ou individualista: como veremos, em Sartre o subjetivo está sempre atrelado ao objetivo, o pensamento acha-se ligado à ação prática, o homem e o mundo nunca se apartam. Mas é pela subjetividade que tudo começa. Subjetividade, antecipe-se, que nada tem a ver com a "abstração interior" dos filósofos metafísicos.
No próximo capítulo seram descritas as informações a respeito do Ser.
BIBLIOGRAFIA
Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, surprimiu todos os conceitos de antemão dados como "verdades estabelecidas" sobre as coisas. É preciso "voltar às próprias coisas", ou seja, descrever os fatos em sua essência. Quando os filósofos falam em "tempo", "consciência", "imaginação", "trabalho" etc, pressupõem já o pleno entendimento dessas essências, mas o importante é justamente saber o que elas são. Por exemplo: sei que aquilo que experimento tendo este livro frente aos meus olhos é uma "percepção". Assim, dá-se por evidente por si mesmo o que é "percepção", quando precisamos é saber o que é isso, qual a essência da percepção. Daí porque a fenomenologia é chamada de ciência eidética (do grego eidos: "essência"). Em outras palavras, em geral só se entende as coisas superficialmente: o ser humano dá como "já sabido" precisamente aquilo que ainda precisa ser elucidado.
Husserl propôs esse "retorno às coisas mesmas" para contestar o positivismo (linha filosófica que defende a primazia do conhecimento pela ciência) precisamente em uma época, o início do século, em que as próprias "verdades eternas" da ciência eram refutadas com o surgimento da teoria da relatividade, das geometrias não-euclidianas e da teoria dos quanta. Disse Husserl: "Tudo o que se tem por evidente não é mais do que preconceito. Todos os preconceitos não são mais do que obscuridades vindas de uma sedimentação da tradição".
Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as "especulações metafísicas" comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam a respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) "visões do mundo" que apenas refletem as idéias de um único pensador. Seguindo de perto esse princípio, a filosofia sartriana não nos diz "como a vida deve ser vivida", nem pergunta "por que o homem existe": limita-se a descrever o que a vida é, que tipo de Ser o homem é.
Outra premissa fenomenológica é a de que o investigador deve ater-se à descrição da existência concreta, captando o homem no seu cotidiano. Um exemplo muito simples - seja a menção de um hábito, ou uma conduta que adotamos regularmente - é capaz de, estudado em sua essência, revelar mais sobre a realidade humana do que a metafísica tradicional dos filósofos que se isolam do mundo, a criar castelos de belas idéias cheias de fantasias. Os livros de Sartre estão repletos de imagens cotidianas: um jogo de tênis, o trabalho de um garçom, uma fila de ônibus, a reunião de um grupo de manifestantes de rua. Em Sartre a filosofia coloca os pés na terra, prendendo-se à vivência da realidade. "Meu objetivo - frisou - é entender o abstrato concretamente". O homem de Sartre é um homem situado em nosso mundo, com nossos problemas e conflitos de todos os dias, e não uma idéia abstrata que só existe na mente dos pensadores. É por isso que em geral todo leitor da filosofia sartriana é capaz de reconhecer-se nela de corpo inteiro.
Outro dado básico da fenomenologia: a tarefa principal do filósofo consiste em investigar a atividade da consciência e discutir as origens e os fundamentos do pensar. Não seria possível descrever as essências a partir da nossa experiência cotidiana sem colocarmos no centro desse campo de pesquisa a nossa própria subjetividade individual. O filósofo não deve adotar um ponto de vista exterior ao mundo, como se estivesse instalado como espectador a contemplar de fora a existência, na qual está atolado: isso é o mesmo que assumir a utópica visão de um pássaro a sobrevoar a terra.
Assim, é pelo prisma da subjetividade que o filósofo deve descrever o campo objetivo circundante. Sua primeira missão será descrever a própria consciência, e, do subjetivo, chegar ao objetivo, do particular chegar ao geral. "A subjetividade do indivíduo é o ponto de partida do existencialismo", disse Sartre. Mais tarde, em uma perspectiva marxista, acrescentaria: o projeto individual é o fundamento de toda ação comum de grupo. Essa ênfase na razão subjetiva, que percorre toda a obra de Sartre, reflete a fidelidade do filósofo ao cogito, ergo sum ("penso, logo existo") do francês René Descartes (1596- 1650): é pelo fato de podermos pensar que podemos saber que existimos**. Ao contrário, sem a nossa consciência, o mundo objetivo nada significaria, já que se auto-ignora como existente.
Além disso, há que se aproveitar de um privilégio menosprezado pela quase totalidade dos pensadores antes de Husserl: o fato de sermos o único tipo de Ser capaz de colocar o seu próprio ser em questão em si mesmo. "O existente que analisamos é o existente que somos", disse Heidegger. O objeto da investigação (a realidade humana) consiste no próprio investigador. Logo, podemos examinar de perto aquilo que está mais diretamente ao nosso alcance: a nossa subjetividade. Em vez de começar interrogando a existência impessoal do mundo, o filósofo deve voltar-se antes de tudo para si mesmo, tornando-se assim, simultaneamente, o investigado e aquele que investiga.***
Podemos então entender por que o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) é tido como precursor de Husserl, Heidegger e Sartre. Havia Kierkegaard reagido contra a doutrina do alemão Hegel (1770-1831), que, a seu ver, falava idealisticamente de um mundo transcendental, utópico, fazendo suas palavras atuarem qual passes de mágica em um universo de possíveis. Perguntava Kierkegaard: que me interessa admitir, como fez Hegel, que os conflitos das idéias através da História conduzirão um dia ao Saber Absoluto, à perfeição da razão humana, à eterna glória do Espírito, se esse esplendorosa era virá no final dos tempos, enquanto eu só conhecerei minhas dores e alegrias, e o enigmático silêncio da morte? Antes de qualquer marcha inexorável do Espírito para um porvir magnificente, existe a minha presença no mundo, sem a qual esse mundo não poderia fazer nenhum sentido para mim, e existem os meus sentimentos, as minhas angústias, a minha maneira de ser e estar nesse mundo. Kierkegaard foi o primeiro a mostrar que a vida de um homem, pelo fato mesmo de ser vivida, experimentada subjetivamente, com suas paixões e sofrimentos, não pode ser absorvida por uma idéia universal, nem pode ser compreendida ou assimilada por um sistema de idéias exterior a ela.
Esse aspecto da obra de Kierkegaard, o método fenomenológico de Husserl e a ontologia de Heidegger - não se esquecendo o "penso" de Descartes - surgem sintetizados e debatidos na doutrina de Sartre e são, em suma, os elementos que ele empregará, na segunda fase de sua obra, para ativar e renovar o marxismo.
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* Segundo Simone de Beauvoir, foi Raymond Aron quem alertou Sartre para o método de Husserl, que estudara em Berlim. Os três bebiam em um bar de Paris, em 1931, quando Aron apontou o seu copo. “Estas vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia”. Lembra Simone: “Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava há anos – falar das coisas tais como as tocava, e que isso fosse filosofia”.
** Posso pôr em dúvida a existência real do mundo e até de mim mesmo, dizia Descartes. Duvido de tudo, mas só não posso duvidar de que duvido. Quanto a isso, tenho absoluta certeza. Portanto, estou certo de que duvido. Logo, estou certo de que penso, e, conseqüentemente, existo.
*** Isso não significa que o existencialismo sartriano seja uma filosofia subjetivista ou individualista: como veremos, em Sartre o subjetivo está sempre atrelado ao objetivo, o pensamento acha-se ligado à ação prática, o homem e o mundo nunca se apartam. Mas é pela subjetividade que tudo começa. Subjetividade, antecipe-se, que nada tem a ver com a "abstração interior" dos filósofos metafísicos.
No próximo capítulo seram descritas as informações a respeito do Ser.
BIBLIOGRAFIA
PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade. Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM. 1995, p.31-34.
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