25 de mar. de 2011

O mal atual não tem culpados

Arnaldo Jabor
O mal atual não tem culpados
Publicado no Jornal OTEMPO em 22/03/2011

Celacanto provoca maremoto
Arnaldo Jabor

Há 35 anos, surgiu um estranho grafite nos muros do Rio: "Celacanto provoca maremoto". Como um peixe pré-histórico provocaria um tsunami? O grafite virou um enigma, só decifrado anos depois: foi um jornalista, Carlos Alberto Teixeira, jovem na época, que inventou a frase célebre, tirada de um desenho animado (ironicamente) japonês: "National Kid". A frase não queria dizer nada e, por isso, ficou famosa.
Nós sempre queremos significados e explicações. Por isso estamos em pânico: que significado extrair de um acontecimento como o terremoto/maremoto do Japão? Nenhum. Não há nada complexo no fato; poderíamos buscar explicações históricas, sociológicas, técnicas, atrás de responsabilidades e erros, até mesmo apontar o desejo dos japoneses de virarem um "superocidente", depois de Hiroshima.
O terremoto do Japão nos choca justamente porque não tem profundidade alguma. É tudo raso. Não houve erro. Não foi ninguém, a não ser a marcha tranquila da matéria ajustando-se na crosta, ignorando-nos, - nós, os micróbios que a habitam.

O 11 de Setembro já tinha subvertido nosso orgulho de engenharia triunfal e superioridade econômica. Osama bin Laden esmagou a potência fálica do capitalismo, como um Godzilla invisível. Ele criou quase um cataclismo "natural"; o 11 de Setembro, com sua violência crua, indiferente à identidade de suas vítimas, mimetizou a brutalidade cega de um tsunami de Alá.
Por outro lado, o desastre japonês inverteu qualquer lógica na paisagem humana; todas as coisas ficaram "fora do lugar" e vimos que não há lugar certo para as coisas ficarem, não há paisagem racional: o navio em cima da casa, os edifícios afundando no mar, um manto negro de detritos flutuando calmamente sobre as cidades como se inunda um formigueiro ou se mata uma barata. Não foi Deus. Seria até bom que ele existisse, como no terremoto de Lisboa em 1755, quando mais de 100 mil morreram dentro das igrejas cheias de fiéis. Era Dia de Todos os Santos.
Voltaire, em seu texto sobre o desastre de Lisboa, denunciou a brutalidade do "Criador vingativo". Mas a fé resistiu porque ao menos eles sentiam na carne os "desígnios" divinos que matam seus devotos. Em vez do Nada. Ao menos havia um Ser querendo nos punir ou salvar, havia alguém preocupado conosco. Havia ainda alguma transcendência no horror.

Hoje não há mais nada; a impressão é que "o sentido do acontecimento é o acontecimento não ter qualquer sentido".
Estamos famintos de transcendência, mas ela está rara - por isso a religião, drogas, autoenganos, magia. A banalização da morte precede grandes tragédias; mas o problema é que as tragédias é que estão ficando banais, tanto as naturais como as humanas. Qual a profundidade de homens-bomba despedaçando-se por causa de um ser que não existe? Quem é o good guy e o bad guy numa guerra em que o inimigo quer morrer? Precisamos de agentes do mal porque o mal moderno está autossuficiente, tem vida própria.
"O escândalo hoje em dia é que um mal imenso possa ser causado com uma completa ausência de malignidade, que uma responsabilidade monstruosa possa andar a par com uma total ausência de más intenções. O caráter inverossímil da situação é de cortar o fôlego. No mesmo instante em que o mundo se torna apocalíptico, e isso por culpa nossa, oferece a imagem de um lugar habitado por assassinos sem maldade e por vítimas sem ódio. Em nenhuma parte, há traços de maldade, não há senão escombros. A ausência de ódio e a ausência de escrúpulos serão uma coisa só. (...) Na atividade do mundo chamada tecnologia é que a história está acontecendo; a tecnologia virou o sujeito da história, na qual somos apenas co-históricos" (Hannah Arendt e Gunter Anders, apud Jean Pierre Dupuy).

A própria confiança que o Ocidente tem na sua soberba tecnociência está em crise. Desconfiamos agora de sua infalibilidade com vexames sucessivos: óleo derramado, reatores invencíveis, aquecimento climático, destruição do ambiente, terrorismo com armas de destruição em massa.
Talvez a fome com que as nações ocidentais lançaram-se, subitamente humanitários, para destruir o Kadafi e proteger a Líbia, mostre como precisávamos exibir nossa potência técnica e bélica, tão humilhada por catástrofes naturais e humanas. Estávamos precisando mesmo de um filho da p..., nítido, legítimo como Kadafi, espantosa caricatura do mal - uma velha maluca de bigode e camisola.
O problema é que a tecnociência não nos brinda com transcendência alguma; ela é reta, finalista sem saber para onde, ela não tem alma ou sonhos éticos. Sempre que pensamos no futuro, pensamos no pior. O século XXI, cheio de promessas, até agora só nos decepcionou. Precisamos de uma ética política global - qual? Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Já se ouvem os trovões de uma tempestade. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia perdem a eficácia. A época está ficando morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas. E a ciência não resolve o problema. No entanto, quando Hiroshima e Nagasaki foram derretidas como sorvete, a bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".
O espetáculo luminoso de Hiroshima marcou o início da guerra do século XXI. Auschwitz e Treblinka ainda eram "fornos" da Revolução Industrial, mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, asséptica. A bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão".
Nietzsche (quem sou eu para citá-lo?) sacou que temos de viver sem transcendência ou esperança, numa arte de viver além do bem e do mal. O mal atual não tem culpados.
Daí a oportuna lembrança do velho grafite carioca: o celacanto produziu o maremoto? Seria ótimo. Ao menos, teríamos um culpado...[X]


21 de mar. de 2011

A arte de perder não é nenhum mistério

Uma Arte


A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.


Elizabeth Bishop