26 de jun. de 2010

Em nome de Deus

As Escolas Urbanas
As origens da Civilização Urbana Medieval

Em 27 de novembro de 1095, Urbano II proclamou a primeira Cruzada. A expedição, reunida em Constantinopla em 1096, tomou Jerusalém em 15 de julho de 1099, estabelecendo ali um domínio cristão e reabrindo as rotas comerciais com o oriente. No restabelecimento do comércio com o oriente, e na sua consolidação como atividade econômica importante, tiveram um papel de destaque algumas cidades mediterrâneas, como Veneza, Pisa e Gênova, além de outras cidades dos Países Baixos. Com o comércio, não só se inaugurou a civilização urbana medieval, mas também surgiu a classe dos comerciantes, que se converteram nos primeiros burgueses. O papel tão relevante que a cidade de Paris teria no mundo da cultura entre os séculos XII e XIV foi possível não somente graças ao impulso da atividade econômica dos burgos, mas sobretudo por sua condição de capital do Reino francês, onde os monarcas capetos (987-1328) tinham fixado quase estavelmente sua residência e, com eles, a corte real.

Cenas do Filme "Em nome de Deus".
Os alunos, alguns em pé, outros, sentados, escutando e participando dos ensinamentos de Abelardo (1079-1142).

/ O que seria uma das primeiras configurações da Escola que conhecemos hoje /

Na civilização urbana proliferaram as escolas urbanas, a partir das quais a filosofia e a teologia tomaram novos rumos, enquanto que as escolas monásticas iam perdendo terreno. Ao mesmo tempo, houve uma renovação na administração das cidades, qua passou para as mãos dos leigos; começou um forte crescimento demográfico; resgataram-se muitas terras a leste do Reno e ao norte do Danúbio, que foram destinadas às lavouras; e ocorreu um aumento geral do bem-estar econômico e social.

Cenas do Filme "Em nome de Deus".
Momento em que Heloise chega a Paris

/ Construção da Catedral de Notre-Dame /

Pedro Abelardo (1079-1142)

Nascido próximo a Nantes (Bretanha), no seio de uma família nobre, abandonou seu lar e a herança paterna para dedicar-se à ciência, tendo Roscelin como seu primeiro mestre. Em 1100 estava em Paris, ouvindo as explicações de Guilherme de Champeaux, a quem contradisse asperamente. Também disputou com Anselmo de Laón, seu mestre em Sagrada Teologia. Começou a ensinar por volta de 1102 em Melun, depois em Corbeil, e finalmente em Sainte-Geneviève (Paris), com sucesso.
Passou a ser chefe da escola de Notre-Dame (Paris) em 1113. Seu romance com Heloise - de quem nasceu Astrolábio -, seu posterior matrimônio com ela e as insídias do cônego Fulbert, tio de Heloise, obrigaram-no a deixar Paris em 1118. Heloise entrou no mosteiro de Argenteuil, e ele próprio ingressou na Abadia de Saint-Denis. (O filho desse casamento foi educado na Normandia pela irmã de Abelardo). (SARANYANA,p. 182).


Cenas do Filme "Em nome de Deus".


No filme, Em nome de Deus, as informações acima são apresentadas. Mas o fundamental da história, acontece em torno do belíssimo romance de Abelardo e Heloise.
Época em que a mulher ou seria noiva de Homem ou noiva de Cristo, Heloise queria mais...
Ele, permitiu que as emoções corrompessem as crenças de sua religião, entregando-se à fornicação. Conduta impossível pelos dogmas religiosos que terminou em castração.

Vale a pena assistir.
Abs.
Cleiton.

BIBLIOGRAFIA

SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval: Das origens patrísticas à escolástica barroca. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio" (Ramon Llull), 2006, pag. 175,176 e 182.

25 de jun. de 2010

Fenomenologia

No século XIX o método experimental era considerado, pelas ciências empíricas, o único método válido e de rigor científico. Nele o sujeito congnoscente e o objeto conhecido eram vistos separadamente. Essa metodologia começou a ser também utilizada pela Psicologia ao considerar o indívíduo como um mero objeto, entre outros objetos, governado por leis naturais que determinam os fatos psicológicos. Contra essa visão se coloca Edmund Husserl (1859-1939) propondo a fenomenologia como uma negação da inseparabilidade entre sujeito e objeto. A fenomenologia surge como uma espécie de "rebelião" contra a tendência das ciências naturalistas de reduzir o conhecimento humano à esfera das ciências fatuais, que vêem o homem como um ente estranho e ausente de seus próprios achados. A fenomenologia aspira, dessa forma, a desenvolver a sua própria subjetividade; deseja revelar-lhe o real significado de ser humano. Ao pesquisar um objeto, ela não parcializa, não parte de pré-conceitos ou de referenciais teóricos. Antes, aborda-o diretamente, questionando e procurando captar a sua essência. Na pesquisa fenomenológica, o objeto não é a coisa-em-si-mesma e como esta se apresenta de modo concreto diante do sujeito cognoscente. Pelo contrário, a coisa-em-si-mesma é o modo como esse fenômeno ou objeto se manifesta à experiência do próprio sujeito.

Para Edmund Husserl, é a consciência do sujeito que o leva à apreensão da realidade, desde que sua consciência se mostre atenta para que o conhecimento de si mesma seja apreendido pelo sujeito cognoscente. Daí a sua afirmação: "A consciência é o que está sendo e não simplesmente consciência da coisa objetivada e que aparece como tendo duranção. Através dela nos cientificamos do que tem sido a continuidade pertinente a ela e suas diversas fases num determinado modo de apresentação, o qual se diferencia no tocante ao conteúdo e à apreensão". A consciência é capaz de refletir sobre si mesma e, desta forma, conhecer a sua própria estrutura, isto é, ser consciência de si própria. Essa relação dialética entre sujeito e objeto é que possibilita a compreensão da realidade, uma vez que é nesse contexto que ela revela o seu significado objetivo. Daí a afirmação de Ernani Maria Fiori: "Mundo e consciência não estão estaticamente opostos entre si, mas assim dialeticamente relacionados um ao outro em sua unidade original e radical. Por esta razão o conhecimento de um só pode ser alcançado através de outro; o conhecimento não é algo dado, mas sim conquista e faz-se a si mesmo. Ele é, ao mesmo tempo, descoberta e invenção".

OLIVEIRA, Admardo Serafim de. Et al. Introdução ao Pensamento Filosófico. 4.ed. São Paulo: Edições Loyola. 1990, p. 104,105.

24 de jun. de 2010

Filme: Siddhartha - Hermann Hesse

Siddhartha

Nos primeiros momentos do filme, Siddhartha conversando com o seu amigo, Govinda, já apresenta a sua principal característica que irá marcar a obra: O questionamento. "Tudo é sempre o mesmo, Govinda. O rio, os templos, as montanhas, as pessoas, as rochas, a areia, os degraus. É tudo a mesma coisa". Sendo assim, Siddhartha decide abandonar a família e o lar e sair a procura de respostas; da Verdade.

Após alguns anos, o personagem torna-se um Sadhu, aprende muita coisa e continua se perguntando se já sabia o suficiente. - "Alcançamos a nossa meta"?, pergunta ao amigo Govinda. E continua: "o que é a meditação"? "O que é conseguir deixar meu corpo"? "O que é segurar a respiração"? "O que é o jejum"? E responde: é um escape, Govinda! É um escape dos tormentos da vida. Nós Sadhus somos escapistas. O homem da vila tem a mesma viagem quando se droga, que, são umas garrafas de vinho e depois adormece. Então, não sente mais as dores da vida. Qual é a diferença do que ele faz, e do que estamos fazendo?

Cansado de meditar, sem saber o "essencial", "O caminho" e sedento por respostas, Siddhartha resolve atravessar o rio. Eles se saparam pois, Govinda, escolhe continuar com o grupo.



  
Em pouco tempo, Siddhartha consegue por intermédio de Kamala, a cortesã, um trabalho com o rico comerciante, Kamaswami. Com a mesma cortesã, o personagem aprende a beijar, a tocar e ser tocado, a sentir. Eles vivem uma paixão que irá transformar, Siddhartha, em pai. Bastante alterado, o personagem que sabia, apenas, pensar, esperar e jejuar, passou a viver uma vida desregrada.
Festas, exagero de comidas, bebidas, jogatinas e uma irritação com a simples falta de água em uma tina, farão com que ele, se pergunte: "O que me tornei"? "Para que renunciei minha liberdade"? "Para isto, ter toda essa comida em minha mesa"?
"Sinto-me enojado".
E, sem olhar para trás e, principalmente, para a sua companheira que estava grávida, ele pegou o mesmo barco e retornou.




Já no final da obra, Siddhartha volta a encontrar com Govinda e lhe pergunta: Para onde vai? O que está buscando? E, ele responde: Tenho buscado o caminho certo toda a minha vida. Siddhartha rebate: "O problema dos objetivos é que se tornam uma obsessão". Quando diz que está buscando é porque há algo para encontrar. A verdadeira liberdade é entender que não existem objetivos. Só existe o Agora. O que aconteceu ontem já foi. E o que acontecerá amanhã, nunca saberemos. Por isso temos que viver o presente. Como o rio.
O rio só vive no presente. Nos também devemos fazê-lo. Nossa insensatez nos faz querer conquistar o tempo. Essa eterna perseguição por dinheiro, do poder, da riqueza, essa sensação de que não há tempo, isso é o que obscurece a verdade.

[Fim]



Nota:
Uma das duas cenas acima é quando Siddhartha queima o corpo da falecida mulher, morta por uma picada de cobra. E a outra escolha foi pela beleza da imagem. Seguindo os mesmos passos (falas) do personagem, disparo: Vamos esperar o entardecer da existência e/ou sepultar alguns ou algumas para "sacar" que isso aqui é uma vez só?
Abs.

23 de jun. de 2010

A Náusea

Um fragmento da obra de Sartre, A Náusea, que ilustra o termo Facticidade.

(...)

Impossível ver as coisas dessa maneira. Molezas, fraquezas, sim. As árvores flutuavam. Um jorrar para o céu? Antes um desmoronamento; a cada instante esperava ver os troncos se encarquilharem como pênis cansados, se encolherem e desabarem no chão, formando um amontoado preto e mole, enrugado. Eles não desejavam existir, só que não podiam evitá-lo; era isso. Então realizavam suas pequenas funções, devagar, sem entusiasmo; a seiva subia lentamente pelos veios, a contragosto, e as raízes se enfiavam lentamente na terra. Mas a cada momento eles pareciam a ponto de abandonar tudo e se aniquilar. Cansados e velhos, continuavam a existir, de má vontade, simplesmente porque eram muito fracos para morrer, porque a morte só podia atingi-los do exterior; só as melodias trazem orgulhosamente a morte em si mesmas, como uma necessidade interna; apenas elas não existem. Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso. Inclinei-me para trás e fechei as pálpebras. Mas as imagens, imediatamente alertadas, de um salto vieram encher de existência meus olhos fechados: a existência é uma plenitude que o homem não pode abandonar. (SARTRE,p.191)

Esclarecimentos:

Resumindo a "Facticidade" da existência, é: o homem lançado entre as coisas e situações que lhe foram impostas e não escolhidas por ele. E a constatação de que sua própria vida não está em seu controle. Sua vida é uma gratuidade porque ele existe. Neste existir, ele passa por problemas sem razão que a justifique. O termo usado por Heidegger (do latim "factum"), indica o caráter do que é puro fato, algo dado, jogado aí, sem fundamentos, como contingência injustificável. Sartre usa a expressão para tratar os aspectos não escolhidos por nós da nossa condição humana concreta: o corpo que possuímos, a situação onde aparecemos, a época histórica que vivemos etc.

Não quero dizer que, A Náusea, não tenha outras passagens que podem se referir ao termo Facticidade. Essa foi, apenas, uma que escolhi.
Abs.

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.p. 191.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 14. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

22 de jun. de 2010

Sartre e a Fenomenologia

Paulo Perdigão conseguiu fazer uma síntese muito bem feita sobre a teoria sartriana.

Introdução
Sartre e a Fenomenologia

Ao estudar em Berlim (1933/1934) o método da fenomenologia, criado no inicio do século por Husserl – e que viria a constituir o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século XX -, Sartre constatou que esse sistema de investigação correspondia às suas exigências de um sistema voltado para a realidade concreta do cotidiano*. Todos os trabalhos iniciais de Sartre obedecem às premissas do método. A grande síntese dessa primeira fase da obra sartriana que é O Ser e o Nada subintitula-se mesmo Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Já a partir do titulo, o livro constitui uma espécie de resposta ao principal tratado de Heidegger, Ser e Tempo (1927), que foi dedicado a Husserl.

Mas, embora empregando a terminologia de Heidegger e Husserl, Sartre não foi mero discípulo desses pensadores: pelo contrário, O Ser e o Nada é, com freqüência, uma contestação à filosofia de Heidegger e uma crítica a Husserl, como veremos adiante. Por ora, limitemo-nos a enumerar os principais pontos da fenomenologia que Sartre endossou.

Em linhas gerais, Husserl insurgiu-se contra um enano teórico que sempre predominou nas ciências humanas em geral: a separação radical entre a consciência do sujeito (em latim, res cogitans: o ser pensante) e o mundo exterior (res extensa: o ser material), consideradas até então como entidades distintas e heterogêneas. Ou bem privilegiava-se a exterioridade das coisas, a chamada "realidade objetiva", em detrimento da razão humana (postura dominante em geral no pensamento científico), ou bem, ao contrário, dava-se ênfase à interioridade da mente, a chamada "subjetividade" (posição frequente em filosofia). Daí as duas linhas básicas do pensamento humano: o Materialismo e o Idealismo. Para Husserl, contudo, acatar tal dualismo é ser unilateral e insuficiente, porque a realidade é outra: o ser humano vive em uma unidade indivisa de mente-corpo-mundo e assim deve ser estudado.

Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, surprimiu todos os conceitos de antemão dados como "verdades estabelecidas" sobre as coisas. É preciso "voltar às próprias coisas", ou seja, descrever os fatos em sua essência. Quando os filósofos falam em "tempo", "consciência", "imaginação", "trabalho" etc, pressupõem já o pleno entendimento dessas essências, mas o importante é justamente saber o que elas são. Por exemplo: sei que aquilo que experimento tendo este livro frente aos meus olhos é uma "percepção". Assim, dá-se por evidente por si mesmo o que é "percepção", quando precisamos é saber o que é isso, qual a essência da percepção. Daí porque a fenomenologia é chamada de ciência eidética (do grego eidos: "essência"). Em outras palavras, em geral só se entende as coisas superficialmente: o ser humano dá como "já sabido" precisamente aquilo que ainda precisa ser elucidado.

Husserl propôs esse "retorno às coisas mesmas" para contestar o positivismo (linha filosófica que defende a primazia do conhecimento pela ciência) precisamente em uma época, o início do século, em que as próprias "verdades eternas" da ciência eram refutadas com o surgimento da teoria da relatividade, das geometrias não-euclidianas e da teoria dos quanta. Disse Husserl: "Tudo o que se tem por evidente não é mais do que preconceito. Todos os preconceitos não são mais do que obscuridades vindas de uma sedimentação da tradição".

Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as "especulações metafísicas" comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam a respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) "visões do mundo" que apenas refletem as idéias de um único pensador. Seguindo de perto esse princípio, a filosofia sartriana não nos diz "como a vida deve ser vivida", nem pergunta "por que o homem existe": limita-se a descrever o que a vida é, que tipo de Ser o homem é.

Outra premissa fenomenológica é a de que o investigador deve ater-se à descrição da existência concreta, captando o homem no seu cotidiano. Um exemplo muito simples - seja a menção de um hábito, ou uma conduta que adotamos regularmente - é capaz de, estudado em sua essência, revelar mais sobre a realidade humana do que a metafísica tradicional dos filósofos que se isolam do mundo, a criar castelos de belas idéias cheias de fantasias. Os livros de Sartre estão repletos de imagens cotidianas: um jogo de tênis, o trabalho de um garçom, uma fila de ônibus, a reunião de um grupo de manifestantes de rua. Em Sartre a filosofia coloca os pés na terra, prendendo-se à vivência da realidade. "Meu objetivo - frisou - é entender o abstrato concretamente". O homem de Sartre é um homem situado em nosso mundo, com nossos problemas e conflitos de todos os dias, e não uma idéia abstrata que só existe na mente dos pensadores. É por isso que em geral todo leitor da filosofia sartriana é capaz de reconhecer-se nela de corpo inteiro.

Outro dado básico da fenomenologia: a tarefa principal do filósofo consiste em investigar a atividade da consciência e discutir as origens e os fundamentos do pensar. Não seria possível descrever as essências a partir da nossa experiência cotidiana sem colocarmos no centro desse campo de pesquisa a nossa própria subjetividade individual. O filósofo não deve adotar um ponto de vista exterior ao mundo, como se estivesse instalado como espectador a contemplar de fora a existência, na qual está atolado: isso é o mesmo que assumir a utópica visão de um pássaro a sobrevoar a  terra.

Assim, é pelo prisma da subjetividade que o filósofo deve descrever o campo objetivo circundante. Sua primeira missão será descrever a própria consciência, e, do subjetivo, chegar ao objetivo, do particular chegar ao geral. "A subjetividade do indivíduo é o ponto de partida do existencialismo", disse Sartre. Mais tarde, em uma perspectiva marxista, acrescentaria: o projeto individual é o fundamento de toda ação comum de grupo. Essa ênfase na razão subjetiva, que percorre toda a obra de Sartre, reflete a fidelidade do filósofo ao cogito, ergo sum ("penso, logo existo") do francês René Descartes (1596- 1650): é pelo fato de podermos pensar que podemos saber que existimos**. Ao contrário, sem a nossa consciência, o mundo objetivo nada significaria, já que se auto-ignora como existente.

Além disso, há que se aproveitar de um privilégio menosprezado pela quase totalidade dos pensadores antes de Husserl: o fato de sermos o único tipo de Ser capaz de colocar o seu próprio ser em questão em si mesmo. "O existente que analisamos é o existente que somos", disse Heidegger. O objeto da investigação (a realidade humana) consiste no próprio investigador. Logo, podemos examinar de perto aquilo que está mais diretamente ao nosso alcance: a nossa subjetividade. Em vez de começar interrogando a existência impessoal do mundo, o filósofo deve voltar-se antes de tudo para si mesmo, tornando-se assim, simultaneamente, o investigado e aquele que investiga.***

Podemos então entender por que o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) é tido como precursor de Husserl, Heidegger e Sartre. Havia Kierkegaard reagido contra a doutrina do alemão Hegel (1770-1831), que, a seu ver, falava idealisticamente de um mundo transcendental, utópico, fazendo suas palavras atuarem qual passes de mágica em um universo de possíveis. Perguntava Kierkegaard: que me interessa admitir, como fez Hegel, que os conflitos das idéias através da História conduzirão um dia ao Saber Absoluto, à perfeição da razão humana, à eterna glória do Espírito, se esse esplendorosa era virá no final dos tempos, enquanto eu só conhecerei minhas dores e alegrias, e o enigmático silêncio da morte? Antes de qualquer marcha inexorável do Espírito para um porvir magnificente, existe a minha presença no mundo, sem a qual esse mundo não poderia fazer nenhum sentido para mim, e existem os meus sentimentos, as minhas angústias, a minha maneira de ser e estar nesse mundo. Kierkegaard foi o primeiro a mostrar que a vida de um homem, pelo fato mesmo de ser vivida, experimentada subjetivamente, com suas paixões e sofrimentos, não pode ser absorvida por uma idéia universal, nem pode ser compreendida ou assimilada por um sistema de idéias exterior a ela.

Esse aspecto da obra de Kierkegaard, o método fenomenológico de Husserl e a ontologia de Heidegger - não se esquecendo o "penso" de Descartes - surgem sintetizados e debatidos na doutrina de Sartre e são, em suma, os elementos que ele empregará, na segunda fase de sua obra, para ativar e renovar o marxismo.

[Fim] 

* Segundo Simone de Beauvoir, foi Raymond Aron quem alertou Sartre para o método de Husserl, que estudara em Berlim. Os três bebiam em um bar de Paris, em 1931, quando Aron apontou o seu copo. “Estas vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia”. Lembra Simone: “Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava há anos – falar das coisas tais como as tocava, e que isso fosse filosofia”.

** Posso pôr em dúvida a existência real do mundo e até de mim mesmo, dizia Descartes. Duvido de tudo, mas só não posso duvidar de que duvido. Quanto a isso, tenho absoluta certeza. Portanto, estou certo de que duvido. Logo, estou certo de que penso, e, conseqüentemente, existo.

*** Isso não significa que o existencialismo sartriano seja uma filosofia subjetivista ou individualista: como veremos, em Sartre o subjetivo está sempre atrelado ao objetivo, o pensamento acha-se ligado à ação prática, o homem e o mundo nunca se apartam. Mas é pela subjetividade que tudo começa. Subjetividade, antecipe-se, que nada tem a ver com a "abstração interior" dos filósofos metafísicos.

No próximo capítulo seram descritas as informações a respeito do Ser.

BIBLIOGRAFIA

PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade. Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM. 1995, p.31-34.

21 de jun. de 2010

Temor e confiança co-existem

Sören Kierkegaard
Temor e Confiança co-existem

Soren Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês considerado fundador do existencialismo. Seus primeiros escritos tratavam dos temas de forma indireta, irônica, e ele os assinava com pseudônimos, às vezes assumindo posições contrárias às suas próprias para as colocar em evidência. Kierkegaard tinha duas metas filosóficas: afastar o cristianismo da tendência de aplicar o racionalismo aos problemas da fé e questionar as filosofias sistemáticas como a de Hegel.

Kierkegaard considerava errôneo e fútil a teoria hegeliana de que a natureza humana é conduzida pela necessidade histórica e o sistema filosófico abrangente que ele construiu para abrigá-la. A ambigüidade e a incerteza, argumentava ele, são essenciais à condição humana; o mundo é fundamentalmente absurdo, sem significado intrínseco. A existência é, portanto, assunto rigorosamente pessoal, uma questão de escolha e de responsabilidade individual que nenhum sistema lógico pode exprimir. Hegel procurava a objetividade perfeita, ao passo que Kierkegaard adotava a “verdade subjetiva”, afirmando que o entendimento pessoal, principalmente da religião revelada, é mais importante que a explicação racional.

Em Ou, ou e Temor e Tremor, ambos de 1843, Kierkegaard imaginou a existência humana em três esferas, ou estágios, os quais se pode escalar por intermédio do auto-exame: a vida estética, dominada pelos interesses mundanos; a vida ética, caracterizada pela atenção ao dever; e a vida religiosa, na qual se aceita totalmente o absurdo da existência e se assume um compromisso com a vida e com Deus. A fé e a obrigação religiosa, segundo ele, não podem ser justificadas pela razão, mas somente pelo “salto da fé”, como ilustra o relato bíblico da disposição de Abraão de sacrificar o filho Isaac por obediência incondicional a Deus. Essa fé livremente escolhida é muito mais autêntica do que a obediência cega aos dogmas.

Embora Kierkegaard quisesse defender o cristianismo e tivesse estudado para ingressar no clero luterano, essa análise não foi bem vista pela Igreja.

Em O Conceito de Angústia (1844) e O Desespero Humano (1849), respectivamente, Kierkegaard identificou duas situações humanas abrangentes que surgem na percepção de que a vida é absurda: angústia - a profunda ansiedade que sentimos perante o Nada, que só se pode remediar por meio de um compromisso consciente com a vida; e o desespero, que prevalece quando a pessoa não é capaz de assumir esse compromisso e cede à confusão do mundo.

Kierkegaard (2006), ainda em relação ao estádio estético.
(...) por uma parte a ausência de desejos, pela outra a submissão a todos os desejos, a embriaguez dos possíveis que deixa flutuar sem passar à realização de nenhum deles. Querendo tudo ao mesmo tempo, nada quer de fato, vagando em um labirinto onde o escolta e o segue o nada que ele pretenderia, no entanto, esconjurar.

Segundo Kierkegaard, viver nessa dimensão estética é viver por opção na superficialidade, sem a preocupação sobre as questões fundamentais da existência.

Na segunda a fase, a dimensão ética é a dimensão da liberdade. O filósofo analisa os alicerces da liberdade à luz da consciência individual, marcada pelo desespero humano que é uma característica essencial do ser humano. Para ele, o desespero é um sentimento que o homem experimenta em face da escolha de si mesmo.
Conforme Kierkegaard (2006), “é necessário não só querer, mas amar tornar-me eu mesmo, e isto implica cumprir humildemente o próprio dever, no quadro familiar do amor conjugal, na fidelidade resgatada dia após dia, que o hábito não enfraquece, mas aprofunda”. O estádio ético, ao contrário do estético, caracteriza-se pelo espírito de seriedade.

Na terminologia existencialista a palavra repetição foi introduzida pelo pensador para descrever a natureza da vida ética. Para esclarecer sua significação, aproximou-o da expressão aristotélica quod quid erat esse, que significa literalmente aquilo que o ser era, expressando, assim, a necessidade e a imutabilidade do ser; a sua repetição. Diferentemente da vida estética, que procura evitar a repetição, buscando novidades a todo instante (simbolizada, por exemplo, por Don Juan), a vida ética baseia-se na continuidade, na escolha repetida que o individuo faz de si mesmo e de sua tarefa, sendo, pois, simbolizada pelo matrimônio.

Já em Temor e Tremor, Kierkegaard serviu-se do episódio do sacrifício de Isaac, em Gênesis 22, para ilustrar o estádio religioso. Com Abraão estamos face a face com a apreensão, pela primeira vez, no nível do sujeito, da identidade propriamente dita. “Esta se conquista quando o sujeito se desapega das coordenadas do primeiro nascimento, quando se desprende da imediatidade natal, da família e da infância, das certezas adquiridas, em uma longa caminhada exodal para a promessa de si mesmo”.

Para Kierkegaard (2006), na visão judeu-cristã, o homem vai em busca de si mesmo, caminha para si mesmo, mediante a provação superada, que robustece sua liberdade, sua responsabilidade, seu senhorio e sua identidade. Se ele é bem sucedido, chega ao núcleo, ao próprio coração daquilo que condiciona a sua vida empírica: a pessoa, fonte transcendental de vida. Sempre que Deus "elege" um homem, submete-o a uma prova (Jó, Abraão, Jonas etc.) e, quando termina a prova, dá a ele um nome que comemora esta passagem e inaugura outra maneira de ser no mundo e em face de Deus: Abrão passa a ser Abraão, Jacó se torna Israel etc.

O texto kierkegaardiano nos apresenta a cena de uma experiência limite em relação com Deus, onde Abraão surge como a figura exemplar da fé, expressa através de duas noções aparentemente contraditórias: o temor e a confiança que co-existem, que se articulam.

Abraão sabe que do encontro com Deus nasce a vida. Ele o crê. Este drama é essencialmente um drama que não aconteceu. Todo o seu significado vem do fato de que Deus, pela intervenção de seu mensageiro, corrige a interpretação primeira que Abraão fizera de sua ordem. Ele surge então como um Deus que pede a vida, e não a morte, mas uma vida capaz de superação, de mortificação da tentação de tomar posse daquilo que Deus dá sem o restituir ao que o deu.

O imperativo "cada um se prove a si mesmo" é decisivo para Kierkegaard, visto que ele articula a imanência humana inicialmente vazia com a transcendência originária, exigindo de cada um o sacrifício da imediatidade como condição do nascimento para si mesmo como sujeito vivo.

Johannes de Silentio (um dos pseudônimos de Kierkegaard) mostra que, da mesma forma que Abraão foi provado sem ter cometido falta alguma, todo homem inocente pode ver uma força aterradora irromper em sua vida e lhe alterar de repente o curso. A desgraça ameaça virtualmente todo homem, e a angústia dessa possibilidade faz parte da vida como tal.

Em algumas de suas obras, o filósofo nos evidencia a necessidade de termos um compromisso existencial com a apropriação de nós mesmos; a apropriação da existência como existência. Existe, ainda, o dilema apresentado por Kierkegaard que consiste em: optar ou optar. Seja como for, o homem kierkegaardiano não pode subtrair-se a optar, pois não querer optar é ainda uma opção, a da má-fé, da trapaça com a vida.

Para Kierkegaard (2006) “Optar é a seriedade da vida e optar por Deus, eis a opção suprema. Neste nível se recebe de volta tudo aquilo a que se renunciara, mas revestido de outro significado”.

Enfim, sua obra procura mostrar o modo do homem se inter-relacionar consigo mesmo, como mundo e com Deus.

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4..ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

ROHMANN, Chris. O Livro das Idéias: um dicionário de teorias, conceitos, crenças e pensadores, que formam nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

20 de jun. de 2010

Macbeth nos Cem anos de solidão

Ajuntar fragmentos de duas obras não passou de uma brincadeira literária.
A primeira, Macbeth, de Shakespeare e, a segunda, Cem anos de solidão,
de Gabriel Garcia Márques.

Colocar em palavras os sofrimentos é muito benéfico mas, quando se guarda esses conteúdos por muito tempo, o resultado pode ser...


E tudo começou a muito tempo atrás...

Malcolm – Piedade, meu Deus! – Mas o que é isso, homem? Jamais cubra os olhos com seu chapéu. Ponha em palavras o seu sofrimento. A dor que não fala termina por sussurrar a um coração sobrecarregado, pedindo-lhe a explosão.

E, possivelmente, a Fernanda leu Macbeth.

(...) Continuou mais interessado na enciclopédia que no problema doméstico, mesmo quando teve de se contentar com uma pelanca ressecada e um pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não vai chover a vida inteira”. E quanto mais voltas adiava as urgências da despensa, mais intensa ia se fazendo a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, seus desabafos pouco freqüentes, transbordaram numa torrente desembestada, desatada, que começou certa manhã como o monótono bordão de um violão, e que à medida que o dia avançava foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não teve consciência da ladainha até o dia seguinte, depois do café da manhã, quando sentiu-se atordoado por um zumbido que era mais fluido e mais alto que o rumor da chuva, e era Fernanda que passeava pela casa inteira lamentando ter sido educada como uma rainha para acabar como mucama numa casa de loucos, com um marido folgazão, idólatra, libertino, que se deitava de barriga para cima esperando que chovessem pães do céu, enquanto ela destroncava os rins tratando de manter flutuando um lar que só se mantinha de pé com alfinetes, onde havia tanta coisa a ser feita, tanta a ser suportada e corrigida desde que Deus amanhecia até a hora de dormir, e que chegava na cama com os olhos cheios de pó de vidro, e no entanto ninguém nunca tinha lhe dado um bom dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda?, nem perguntado a ela, nem que fosse só por cortesia, por que estava tão pálida nem por que despertava com essas olheiras cor de violeta, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse do resto de uma família que, afinal de contas, sempre a teve como um estorvo, como o trapinho de segurar panela, como um boneco pintado na parede, e que sempre andavam fazendo futrica contra ela pelos cantos, chamando-a de santarrona, chamando-a de fariséia, chamando-a de boa bisca, e até Amaranta, que em paz descanse, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o cu com as têmporas, bendito seja Deus, que palavras, e ela havia agüentado tudo com resignação em nome do Santo Padre, mas não havia conseguido suportar mais quando o malvado do José Arcádio Segundo disse que a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma janotinha pedante, imagine só, uma janotinha mandona, valha-me Deus, uma filha de má saliva, da mesma índole dos pedantões que o governo mandou para matar trabalhadores, veja se é possível, e se referia a ninguém menos que ela, ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama com tanta estirpe que revolvia o fígado das esposas dos presidentes, uma filhod’alga de sangue como ela, que tinha direito de assinar onze sobrenomes peninsulares, e que era o único mortal naquela aldeia de bastardos que não se sentia atarantada diante de dezesseis talheres, para que depois o adúltero do seu marido dissesse, morrendo de rir, que tantas colheres e garfos, e tantas facas e colherinhas não eram coisa de cristãos e sim de centopéias, e a única que podia determinar de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado e em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e não como a troglodita da Amaranta, que em paz descanse, que achava que o vinho branco devia ser servido de dia e o tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia se vangloriar de não ter feito nada do corpo que não fosse em peniquinhos de ouro, para que depois viesse o coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, e tivesse o atrevimento de perguntar com seu humor de fel de maçom de onde ela tinha merecido aquele privilégio, e se ela cagava merda ou bromélias celestiais, imaginem só, com essas palavras, e para que Renata, sua própria filha, que por indiscrição havia visto seus excrementos no quarto, respondesse que na verdade o peniquinho era de muito ouro e muita heráldica, mas que o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras porque era merda metida a besta, imaginem só, sua própria filha, de maneira que nunca tinha se deixado iludir com o resto da família...
Não a interrompeu até bem avançada a tarde, quando não conseguiu mais agüentar a ressonância de bumbo que atormentava sua cabeça.
– Agora cale essa boca, por favor – suplicou.

(...)

Eu não te disse!
Bom domingo.
Abs,
Cleiton.

BIBLIOGRAFIA

MÁRQUES, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno. 74. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. P. 356 a 360.

SHAKESPEARE, William. MACBETH. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2000. P. 108.