18 de fev. de 2011

Fragmentos literários: Aprender a ensinar

Aprender a ensinar
Franklin Leopoldo e Silva*

Em nosso modo habitual de definir as coisas, as oposições desempenham um papel muito relevante. Conhecemos o preto por oposição ao branco, o frio por oposição ao quente, o sólido por oposição ao líquido; também sabemos o que é muito por oposição a pouco, o diferente por oposição ao idêntico e múltiplo por oposição ao uno. Estendendo esta oposição às relações humanas, fazemos o mesmo jogo quando opomos o pai ao filho, o marido à esposa e o amigo ao inimigo. Parece que discernimos tudo com mais nitidez quando logramos levar as diferenças até a oposição. E é assim também que julgamos saber o que é ser professor quando contrapomos esta condição à do aluno. Aliás, este é um daqueles casos em que definir por oposição permite extrair várias conseqüências em termos de conduta, de direitos e de deveres, e até de posição hierárquica.

Entretanto, não é difícil perceber que tais distinções nos permitem definir os termos na exata medida em que os relacionamos, no sentido de estabelecer uma dependência mútua. Isto significa que definir por oposição é conhecer uma coisa pela outra, o que, no limite, forma uma rede de relações em que cada coisa é conhecida por meio de outra, o que implica sempre a presença de pelo menos dois termos. O que nos permite dizer, então, que as oposições servem muito mais para compreender o modo como as coisas se ligam do que a maneira pela qual se excluem. É por isso que a oposição deixa de ser útil no conhecimento e na experiência de vida quando a traduzimos em separação pura e simples. E esta é uma tentação freqüente, na medida em que nos inclinamos a entender que a visão clara de cada coisa em si mesma supõe considerá-la como se existisse única e exclusivamente por si.

Nem é preciso refletir muito para notar quanto as atitudes exclusivistas contribuem para a deterioração das relações humanas. É por separar-me completamente do outro que venho a acreditar que ele está errado e, portanto, excluído da verdade que eu possuo, o que me outorga o direito de desprezá-lo, de tutelá-lo, de modificar sua conduta e, no limite, de eliminá-lo. Meu comportamento seria diverso se pudesse ver na diferença um enriquecimento da afinidade, já que o caráter produtivo das relações está na compreensão e na vivência da diversidade. Compreender a identidade é inseparável da compreensão da alteridade, porque o que sou para mim mesmo se manifesta constantemente naquilo que sou para os outros e naquilo que eles são para mim.

Assim, ninguém pode apreender autenticamente o que significa ser professor se esquecer, por um momento sequer, a oposição complementar pela qual esta significação se constrói: o aluno, tanto no aspecto da interação e do relacionamento quanto no aspecto da irredutível diferença e singularidade. Que a escola e o professor somente existam em função do aluno parece óbvio, mas esta evidência se revela ilusória assim que procuramos compreender um pouco mais detidamente a função do professor.

Porque não há nada mais paradoxal do que a relação pedagógica. Ela significa conduzir o outro à sua própria autonomia, e sem dúvida há algo de quase contraditório nesta definição e neste propósito. Toda a dificuldade da relação e da formação inerentes ao processo educativo está contida neste paradoxo.

Vivemos numa sociedade da produção em que o critério do êxito está ligado ao produto e às técnicas de produzi-lo eficientemente. Ora, qual poderia ser o produto da educação senão os indivíduos adestrados para suas tarefas e socialmente ajustados ao sistema produtivo? E como se poderia definir a tarefa do professor a não ser por essa produção e os meios pelos quais ele a desempenha satisfatoriamente? O que se espera da escola e do professor é que eles produzam indivíduos que atendam as solicitações de uma sociedade de mercado. A qualidade dos estabelecimentos de ensino é julgada por esse critério. Por isso se diz que uma sociedade equilibrada e consciente de seus valores produz bons indivíduos, isto é, produtos úteis, bem acabados e com utilização garantida.

A analogia é clara: ela supõe que educar e formar não se distingue de fabricar objetos. Esta é a causa da procura incessante de técnicas por meio das quais a educação poderia ser bem sucedida; pois o aprimoramento da tecnologia de fabricação reflete-se na melhoria do produto.
Para que esse desideratum pudesse ser cumprido, seria necessário instituir entre o professor e o aluno a mesma distinção e separação que existe entre o fabricante e o seu produto. Seria preciso que o professor fosse um técnico e o aluno uma coisa. Os fins e os meios de atingi-lo teriam de ser igualmente reificados (coisificar). Esta é, felizmente, uma tarefa absolutamente impossível de ser cumprida. Tanto nos sucessos quanto nos fracassos da educação, as causas e razões não podem ser atribuídas, como no caso da fabricação, à matéria-prima, aos recursos tecnológicos e às formas de empregá-los. Porque se trata de uma relação humana em que os meios e os objetivos devem ser experimentados na tensão das diferenças e na busca comum de uma síntese difícil e sempre incompleta entre as singularidades individuais, vividas na especificidade de situações históricas e sociais muito pouco previsíveis e controláveis.

Neste sentido, é correto afirmar que o professor existe em função do aluno, e vice-versa, desde que esta relação seja entendida não de forma contrastante e extrínseca, mas a partir de uma solidariedade profunda que só pode existir num contexto de compreensão da pessoa, na multiplicidade convergente dos aspectos, individuais e coletivos, subjetivos e histórico-sociais. As posições respectivas do professor e do aluno não estão nunca definidas, elas têm de ser construídas na experiência dialogante em que se inventam as respostas às diferentes situações. E não existiria nada de mais contrário a esta perspectiva do que a consolidação de uma oposição baseada na diferença excludente entre o ensinar e o aprender. Pois se a formação consiste na construção de uma consciência crítica, a educação formadora não pode ser modelagem, mas sim a constante renovação das ocasiões para que cada indivíduo libere sua singularidade e aprenda a vivê-la no contexto de uma sociabilidade autêntica, aprendendo ao mesmo tempo como se conduzir para que tais metas sejam ao menos um horizonte de futuro, uma esperança plausível.

A desvalorização do professor, a recusa social que o discrimina em várias dimensões, a começar pela remuneração e condições de trabalho, as críticas e as propostas de reforma do ensino em seus vários níveis expressam fundamentalmente o descontentamento do sistema que não pode deixar de perceber a característica que apesar de tudo persiste, oculta, deformada, desqualificada, como um resíduo no fundo da relação pedagógica: a emancipação, requisito para que o indivíduo possa assumir de fato sua humanidade. A transformação da educação em mercadoria aparece então como a odiosa opção moderna para a reinserção da educação e do educador na atualidade de um mundo em que a produção e o consumo, de um lado, e a competitividade e o egoísmo, de outro, representam os únicos parâmetros de julgamento.

Nesta época catastrófica em que nos coube viver, sitiados pelos paradigmas de alienação, hesitantes quanto ao presente, incertos quanto futuro, cabe tomar consciência de que precisamos aprender a ensinar o valor da resistência.

* Franklin Leopoldo e Silva é professor de História da Filosofia Contemporânea do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, e autor de: Descartes, Metafísica da Modernidade; Bergson, Intuição e discurso filosófico e Ética e literatura em Sartre.

Org. PASCALE, Rosana; WILLIAM, Lara. Relações do Ensinar. São Paulo, SP: Paulus Editora. 2004. p.11-13.


Ps. Existe uma outra referência do autor no link abaixo.
Um DVD sobre Fenomenologia e Existencialismo.