27 de nov. de 2009

A correspondência

Tema: A correspondência.

Nossas cartas se parecem conosco, desde que o queiramos um pouco, e mesmo, às vezes, quando não o queremos. Frágeis como nós. Irrisórias como nós. Belas, por vezes. Pobres e preciosas, corriqueiras e singulares, quase sempre. Um pouco de nossa alma introduziu-se ali, na pouca espessura de um envelope. Um pouco de nossa vida, na loucura do mundo. Um pouco de nosso amor, no deserto das cidades.

Por que se escreve uma carta? Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper. O eu, sem se fechar nele. Isso não substitui a fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis, como a vida, como o amor, como um presente, e são um presente. “Não é nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito, muito...” Não é nada, ou quase nada, e contudo um pedaço do mundo e da alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração, tão próximo na grande distância.

Extraído do livro de André Comte-Sponville, Bom Dia, Angústia!

25 de out. de 2009

Angelus Novus

(...) à racionalidade controladora deve-se associar uma outra racionalidade capaz de apreender o futuro no presente - "de prever, por assim dizer, o presente". Nesse sentido, Benjamin escreve: "O dia jaz cada manhã, como uma camisa limpa sobre nosso leito; o tecido incomparavelmente fino, incomparavelmente denso, de limpa profecia, nos assenta como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende da maneira de apreendê-las no momento do despertar".
Esse instante, para os frankfurtianos, tal como a revolução, é risco, possibilidade de fracasso, esperança de êxito.

* Imagem: Angelus Novus: o anjo da história, impedido de realizar sua missão angélica, não se encontra paralisado, mas numa "imobilidade hesitante". Esse instante revolucionário é a chance da redenção das vítimas do "progresso".

Ref. MATOS, Olgária C.F. A Escola de Frankfurt. Luzes e Sombras do Iluminismo. São Paulo: Editora Moderna, 1993.

4 de out. de 2009

Cartas a um jovem poeta

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta / A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. São Paulo. Globo, 2001. p.51-55.

Roma, 23 de dezembro de 1903.
Meu caro Sr.Kappus,

NÃO QUERO QUE FIQUE sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a sua solidão é grande, alegre-se com isso. Que seria, com efeito, uma solidão (faça essa pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer, por mais banal e barata que fosse; por uma aparência de acordo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam essas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino, e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isso não o deve desorientar. O que se torna preciso é, no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes, porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.

Se depois um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem ligação alguma com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança pela defensiva e pelo desprezo - uma vez que a não-compreensão significa solidão, ao passo que defensiva e desprezo equivalem à participação nas próprias coisas cujo afastamento se deseja?

Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro - o que importa, apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer suas relações com os homens. Aliás, quem lhe diz que as tem? Sua profissão, bem o sei, é dura, cheia de contradições para si; previ a sua queixa e sabia que ela havia de vir. Agora que chegou não o posso tranqüilizar, mas apenas aconselhar-lhe que examine se todas as profissões não são assim cheias de exigências, de hostilidade contra o indivíduo, como que ensopadas do ódio daqueles que, mudos, resmungando, se tiveram de conformar com o simples dever. A posição em que agora deve viver não é mais carregada de convenções, preconceitos e erros do que todas as outras. Se há algumas que exigem bem uma liberdade maior, não existe nenhuma que seja larga e ampla em si, relacionada com as grandes coisas de que se compõe a verdadeira vida. Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos desprender-se-ão dele como de um morto, embora se encontre no meio vibrante da vida. O que agora deve experimentar, caro Sr. Kappus, em sua qualidade de oficial, tê-lo-ia sentido em qualquer das profissões existentes. Mesmo que, fora de qualquer posto, tivesse procurado apenas contatos leves e independentes com a sociedade, este sentimento constrangedor não lhe seria poupado. Por toda parte as coisas são assim. Mas isso não é um motivo de angústia ou tristeza. Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança, tão tristes e tão felizes - e, quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor.

Se porventura lhe for temível e penoso pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, por não poder mais crer em Deus que nela se encontra por toda parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr. Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes, que o senhor ainda não o possuiu? Aliás, quando o teria possuído? Parece-lhe que uma criança o possa segurar, a Ele que os homens custam a carregar e cujo peso esmaga os anciãos? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa perder como um seixo? Não lhe parece, antes, que aquele que o teve pode por Ele ser perdido? Se porém reconhece que Ele não existia na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi iludido pelo sua saudade e Maomé enganado por seu orgulho; se percebe com espanto que Ele não existe nem mesmo nesta hora em que falamos d’Ele - que coisa então o autoriza a sentir a falta de alguém que nunca foi e a procurá-lo como se estivesse perdido?

Por que não pensar que Ele é o vindouro, aquele que está por vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as folhas? Que é que o impede de projetar o seu nascimento para os tempos posteriores e viver a sua vida como um dia belo e doloroso de uma grandiosa gravidez? Não vê como tudo o que acontece é sempre um começo? Não poderia ser, então, o começo d’Ele, pois todo começo em si é tão belo? Se Ele é o mais perfeito, não deve ter havido algo menor antes d’Ele para que Ele se pudesse escolher a si mesmo dentro da plenitude e abundância? Não deverá ser Ele o último, para encerrar tudo em si? Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos. Começamos pelo pormenor, pelo insignificante (posto que venha do amor), depois pelo trabalho e pelo repouso, por um silêncio ou por uma pequena alegria solitária; por tudo o que fazemos, sem participantes ou aderentes, iniciamos Esse que não podemos compreender, do mesmo modo que os nossos antepassados não nos puderam compreender a nós mesmos. No entanto, esses seres desaparecidos há muito estão em nós, em nossos pendores, pesando sobre nosso destino, zumbindo em nosso sangue, emergindo num gesto que sobe do âmago dos tempos.

Existe algo que lhe possa tirar a esperança de estar futuramente n’Ele, no longínquo, no extremo?

Festeje o Natal, caro Sr. Kappus, com o pio sentimento de que talvez Ele, para começar, aguarde do senhor justamente essa angústia de viver. Talvez justamente esses dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n’Ele, como outrora, quando criança o senhor n’Ele trabalhou palpitante. Não seja impaciente e mal-humorado. Lembre-se de que a menor coisa que podemos fazer consiste em lhe dificultar tão pouco o nascimento quanto a terra dificulta o advento da primavera, quando ela tem de vir.

Fique alegre e tranqüilo.
Seu
Rainer Maria Rilke


* Texto trabalhado em sessões de psicoterapia.

O Medo de Errar

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo – Crônicas. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 1999.

O MEDO DE ERRAR
13 de Setembro de 1969

A um suíço inteligente perguntamos uma vez por que não havia propriamente pensamento filosófico na Suíça. Como resposta, nosso interlocutor lembrou-me que seu país tem três raças, quatro línguas. De onde podemos concluir, três ou quatro pensamentos. Que esta nação que funciona, digamos, quase perfeitamente, precisa constantemente procurar um equilíbrio, fazer uma suma de idéias, reduzi-las àquela que, sem ferir completamente as outras, satisfaça mais ou menos a todos. Assim, quem pensa espera de antemão uma vitória apenas média. As idéias de cada um se encontram e param no seu ponto de contato com as outras. Ora, o pensamento filosófico é por excelência aquele que vai até o seu próprio extremo. Não pode admitir transigências, senão a posteriori. Nenhuma obra filosófica poderia ser construída tendo como um de seus princípios tácitos a necessidade de se chegar somente até certo ponto.

Este é mais um dos aspectos da neutralidade suíça. Esta não funciona apenas em relação a fins exteriores. É um princípio que dirige a paz interna, exatamente tendo em vista a mistura de raças. É um princípio, mais do que de paz, de apaziguamento. Ser neutro não é solução a determinado caso, ser neutro tornou-se, com o tempo, uma atitude e uma previdência.
Esse admirável país encontrou sua fórmula própria de organização social e política. Mas que pouco a pouco estendeu-se a uma fórmula de vida.
O amálgama de tendências e necessidades formou uma cultura e entranhou-se de tal forma nos indivíduos que, se esta nação não fosse formada de vários grupos raciais, se poderia cair na facilidade de falar em caráter racial.
Pode-se falar no entanto em caracteres nacionais – e um dos mais evidentes é o da atitude mental de precaução.

A impressão que se tem de um suíço é a de um homem que vive em segurança e, mais do que isso, que sofre da ânsia de segurança. A propósito disso poder-se-iam lembrar várias causas gerais, como situação geográfica, dificuldade de produção agrária etc.
Essa atitude de previdência encontra, a cada momento, motivo de se concretizar. E se estende até onde já seria desejável que se interrompesse.
Assim, por exemplo, é comum, pelo menos em Berna , ver-se metade de uma platéia retirar-se antes de começarem as músicas modernas. Às vezes antes de peças que serão executadas pela primeira vez na Suíça.

No entanto o povo suíço gosta realmente de música, sinceramente, sem nenhum esnobismo. O fato é motivado particularmente pelo horror que o povo tem pela música moderna ou pela literatura moderna ou pela pintura moderna: a palavra moderna soa um pouco como escândalo, como aventura ainda suspeita. Porém, mais amplamente e mais profundamente, esse fato vem de que o suíço teme errar na sua admiração.
Os suplementos literários de jornais suíços descobrirão cartas sepultas de Vigny – adivinharão pensamentos ocultos de Madame de Staël – atacarão, mesmo com certa ferocidade cômoda, o várias vezes falecido Renan – desculparão Victor Hugo nas suas brigas com amigos – e se aparece oportunidade de comemoração de centenários as páginas se cobrirão de comentários a respeito; há mais centenários na terra do que um homem atual pode prever.

Não é apenas por gosto e por respeito à tradição. É medo de se arriscar. Um escritor vivo é risco constante. É homem que pode amanhã injustificar a admiração que se teve por sua obra com um mau discurso, com um livro mais fraco.
O povo suíço nada recebeu gratuitamente. Tudo nessa terra tem marca de nobre esforço, de conquista paciente. E não foi pouco o que eles conseguiram – tornar-se um símbolo de paz.

Esse estado de alta civilização – onde a expressão homem civil tem realmente um sentido e uma força – eles o manterão a todo custo, com austera previdência, com dura disciplina mental, com a precaução contra o erro.

O que não impede que tanta gente, em silêncio, se jogue da ponte de Kirchenfeld, sem que os jornais sequer noticiem para que outros não o repitam. De algum modo há de se pagar a segurança, a paz, o medo de errar.

* Texto trabalhado em sessões de psicoterapia.

16 de ago. de 2009

Aufklärung - partes 5 e 6

Partes: 1 e 2 - 24/05/09
Partes: 3 e 4 - 25/05/09
Partes: 5 e 6 - 16/08/09
Partes: 7 a 10 - 08/05/10

5 - Para este esclarecimento [Aufklärung] porém nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento [Aufklärung]? Qual não o impede, e até mesmo o favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento entre os homens.
O uso privado da razão pode, porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem, contudo, por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento.
Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado.
Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário certo mecanismo, em virtude do quais alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade.
Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até à sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo.
Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse por-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições.
Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja.
Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se serve. Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja contraditório com a religião interior. Pois se acreditasse encontrar esta contradição não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar.
Por conseguinte, o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos.

6 - Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo credo invariável, a fim de por este modo exercer uma incessante supertutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está, portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso.
Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor, por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes.
Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem sem dúvida pode no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe adiar o esclarecimento. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calçar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua. Quando cuida de que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si.
Causa mesmo dano a sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Caesar non est supra grammaticos (César não está acima dos gramáticos), mas também, e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos.


3 de ago. de 2009

Olhos fechados e coração aberto

Sobre o filme Antes de Partir

Cleiton Renato Rezende

Jean Paul-Sartre concorda com Martin Heidegger, quando este afirma que, facticidade é o que caracteriza a existência como lançada no mundo, ou à mercê dos fatos, ou ao nível dos fatos e entregue aos seus determinismos.

Os personagens principais da obra cinematográfica intitulada Antes de partir são Edward Cole e Carter Chambers. Dois homens que descobrem que estão com câncer em estágio avançado e se conhecem. A facticidade fez com eles partilhassem o mesmo quarto de um hospital e, juntos, escrevessem uma lista de atividades que gostariam de realizar antes de morrer.
Carter é um modesto mecânico, casado, pai de três filhos e erudito. Edward Cole, um empresário bem sucedido que, se descasou inúmeras vezes, prepotente e que se mantém distante de sua única filha, além de lhe ser hostil.

Para Sartre o homem precisa, durante a sua vida, principalmente obrigado pela experiência de situações-limite, fazer-se humano no contato com a realidade real e concreta, tal qual lhe aparece e no contato com outros seres humanos.

Diante desta circunstância, é constatado no filme o movimento que os personagens fazem apesar de seus sofrimentos, diferença de raças e níveis sociais e econômicos.
A consciência da realidade (a doença terminal) faz surgir na dupla o sentimento de falta de sentido diante da existência. Ou seja, o absurdo do nascer, viver e morrer.
A princípio, eles não encontram nenhuma explicação racional que possa ajudá-los a se posicionar diante do fato concreto (câncer) e suas conseqüências.

Neste momento, as certezas construídas na vida dos dois personagens não lhes oferecem respostas prontas que lhes orientem diante da “nova” existência concreta. É a consciência implacável do absurdo da existência.

Com isso, analisando o filme à luz do existencialismo sartreano, percebemos a impotência do indivíduo diante do que lhe é determinado pela realidade concreta. E a constatação de que a vida não esta sob o controle de nenhum individuo. Ela é uma gratuidade, porque o existir apresenta problemas sem razão que o justifique.

No filme, de acordo com a lista, os personagens realizaram as seguintes ações: uma corrida automobilística; Cole fez uma tatuagem; ambos fizeram skydiving*; eles visitaram a capital francesa, a China (Himalaia) e contemplaram as pirâmides do Egito.
É possível apreender no decorrer do filme, momentos verbalizados e outros não, em que os personagens questionam-se sobre a morte e o morrer, o suicídio, a perda da consciência, o sentido da vida e Deus.

A médica e escritora Elisabeth Kübler-Ross narrou em seu livro Sobre a Morte e o Morrer (Editora Martins Fontes), os cinco estágios vividos pelos pacientes que a eminência da morte lhes causa, que são: negação e isolamento, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Estes cinco estágios são apresentados clara e objetivamente na convivência e diálogos entre os personagens.
Conforme a autora citada, “podemos ajudá-los a morrer, tentando ajudá-los a viver, em vez de deixar que vegetem de forma desumana”.

As reflexões demonstradas ou insinuadas para quem assiste ao filme mostram que é dentro de cada um deles que se encontra a referência necessária para as escolhas e atitudes diante da vida.
E também é possível inferir que a morte em si, não é triste, mas, triste é deixar de viver a vida, enquanto se está vivo.

Portanto, é na jornada e não no destino que existe a possibilidade do ser humano ser feliz, pois, durante o trajeto, não lhe é dado saber se irá chegar aonde deseja.
Com olhos fechados e corações abertos eles se foram: um concedeu que o outro vivesse e, este, que o outro aprendesse a viver.

* Salto de pára-quedas em que o aluno e o instrutor ficam presos um ao outro.

BIBLIOGRAFIA

HowStuffWorks - Brasil: Disponível em Acesso em 3 de Março de 2008.

ROSS-KÜBLER, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ROHMANN, Chris. O livro das idéias: um dicionário de teorias, conceitos, crenças e pensadores, que formam nossa visão de mundo. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000, p. 424.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 4 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

11 de jul. de 2009

O que é o amor?

Temos a mania de achar que amor é algo que se busca. Buscamos o amor nos bares, na internet, na parada de ônibus. Como num jogo de esconde-esconde, procuramos pelo amor que está oculto dentro das boates, nas salas de aula, nos teatros. Ele certamente está por ali, você quase pode sentir o seu cheiro, precisa apenas descobri-lo e agarrá-lo o mais rápido possível, pois lhe ensinaram que só o amor constrói, só o amor salva, só o amor traz felicidade.

Amor não é medicamento. Se você está deprimido, histérico ou ansioso demais, o amor não se aproximará. Caso o faça, vai frustrar sua expectativa, porque o amor quer ser recebido com saúde e leveza. Ele não suporta a idéia de ser ingerido de quatro em quatro horas, como um antibiótico para combater as bactérias da solidão e da falta de auto-estima.

Você já ouviu muitas vezes alguém dizer: Quando eu menos esperava, quando eu havia desistido de procurar, o amor apareceu. Claro, o amor não é bobo, quer ser bem tratado, por isso escolhe as pessoas que, antes de tudo, tratam bem de si mesmas. O amor, ao contrário do que se pensa, não tem que vir antes de tudo. Ele não é uma garantia de que, a partir do seu surgimento, tudo o mais dará certo.

Queremos o amor como pré-requisito para o sucesso nos outros setores, quando, na verdade, o amor espera primeiro você ser feliz para só então surgir diante de você sem máscara e sem fantasia. É esta a condição. É pegar ou largar. Para quem acha que isso é chantagem, arrisco sair em defesa do amor: Ser feliz é uma exigência razoável e não é tarefa tão complicada.

Felizes são aqueles que aprendem a administrar seus conflitos, que aceitam suas oscilações de humor, que dão o melhor de si e não se auto-flagelam por causa dos erros que cometem. Felicidade é serenidade...
Não, não tem nada a ver com piscinas, carros e muito menos com príncipes encantados. O amor é o prêmio para quem relaxa!

Este belo texto me foi ofertado por uma amiga...

Ps. Há preciosas informações sobre este tema em: Do Amor - Ensaio de Enigma, de Artur da Távola: Editora Nova Fronteira.

8 de jul. de 2009

Pensar a vida, saltar o Abismo

Pensar a vida, saltar o Abismo
Dulce Critelli, professora de Filosofia da PUC/SP.

Há poucos dias, ao final de uma palestra de filosofia, um rapaz me procurou dizendo que tinha sido sua dor o que o levara até lá. Sentia-se confuso e perdido na própria vida. Buscava uma palavra que lançasse luz sobre sua existência, que lhe indicasse uma saída, insinuasse como sua vida poderia ganhar sentido. O que lhe doía, simplesmente, era ser.

Quantas pessoas já não me disseram o mesmo! Assistem a conferências e a aulas de filosofia para pensar a vida. É uma atitude interessante, justamente porque a filosofia tem a fama de só tratar de questões abstratas e, por isso mesmo, de ser inútil. Também Heidegger, esse grande pensador contemporâneo, concorda que, com a filosofia, não podemos fazer nada, como construir uma ponte ou uma estrada. E, no entanto, considera, é a filosofia que faz alguma coisa conosco.

Acho que é isso o que as pessoas esperam que, ajudando-as a compreender melhor a existência, a filosofia mexa com elas e, então, possam vencer essa dor de ser. Elas não querem tratar das dificuldades e dos problemas imediatos, mas do sentido da vida.

Todos nós já sentimos essa dor de ser e, vez ou outra, com uma intensidade quase insuportável. Sentimo-nos estrangeiros em nossa própria vida. Sentimo-nos em dívida com nós mesmos. Um vazio nos invade. Nossa existência perdeu o significado. Não sabemos mais quem somos nem quem podemos ser. Queremos que alguém nos explique o viver! Que alguém nos explique quem somos e a que viemos!

A dor de ser faz parte da nossa natureza. Não agüentamos apenas ser, temos de ser nós mesmos. Não queremos repetir ninguém nem que ninguém nos copie. Também não nos basta que os outros aprovem nossa vida. É preciso que ela faça sentido para nós mesmos.

Essa dor sentida é, no entanto, apenas uma face da moeda; a outra, em que mal reparamos, é a de uma bem-aventurança. Se podemos sentir a dor de nos ter perdido de nós mesmos, é porque temos o poder de nos encontrar novamente. O que nos angustia e nos deixa aturdidos nessa historia é que, para esse individuo exclusivo que somos e para o sentido pessoal de nossas vidas, não há nenhuma referência possível. Os modelos culturais e as pessoas com quem convivemos podem nos inspirar, mas apenas isso. O resto é conosco. Temos de ser ao mesmo tempo os autores, os atores e os juízes de nosso próprio existir.

A certeza de que morreremos, mas sem saber quando, é o que muitas vezes nos empurra para essa tarefa sem referências de tomarmos nas mãos o nosso destino, a nossa história exclusiva, e de emprestarmos para a vida a nossa própria cara.

Temos pouco tempo. E tudo é risco, é aposta. É passo sobre o abismo. Que exige coragem. E preparação. Essa preparação é tarefa do pensar, da reflexão. O que a filosofia pode fazer conosco é isto: ensinar-nos a pensar. E conhecer esse “segredo” já é meio caminho andado.

Pensar (ou refletir) não é perder-se em elucubrações, análises, cálculos, infindáveis relações. Ao contrário, é estancar esse tráfico incessante de palavras e idéias em que nos atolamos e penetrar naquilo que ainda é invisível e desconhecido para nós, trazendo-o para a luz.

Pensar começa por parar (o tráfego de idéias) para pensar. Quando paramos para pensar, podemos nos observar e flagrar quais medos, fantasias, crenças e preconceitos nos têm influenciado. Flagrando-os, nós interrompemos o seu fluxo e domínio que vinham tendo sobre nós. Eles emudecem. Silenciam. E nós mesmos entramos em silêncio. E é só quando ficamos silenciosos que começamos a nos ouvir. A ouvir a voz que vem lá das nossas profundezas, sábia, revelando o sentido de nossa vida, o caminho, o gesto necessário. Enchendo-nos de coragem para o passo sobre o abismo. Transformando a dor em bem-aventurança, em vontade, em decisão. Descobrindo nosso próprio poder. Preparando-nos para ir ao enlaço de ser quem só nós mesmos podemos ser e de viver como só nós mesmos podemos viver.

4 de jul. de 2009

Poucos é ainda dizer demais.

"O método próprio da filosofia consiste em conceber claramente os problemas insolúveis em sua insolubilidade, depois simplesmente em contemplá-los, fixamente, incansavelmente, durante anos, sem nenhuma esperança, na espera. Segundo esse critério há poucos filósofos. Poucos é ainda dizer demais".
WEIL, Simone. La connaissance surnaturelle. Paris, Gallimard, 1950, p. 305.

30 de mai. de 2009

MODIGLIANI


Olá. Um excelente filme sobre o pintor Amedeo Modigliani (Modi) com Andy Garcia no papel principal. Prepare o vinho tinto que o filme já vai começar...
Bom sábado.

ps: (...) só pintarei seus olhos quando conhecer sua alma.
Imagem / pintura de Jeanne.

EMBRIAGAI-VOS

Charles Baudelaire – Poeta Francês

É necessário estar sempre bêbado.
Tudo se reduz a isso; eis o único problema.Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem tréguas.
Mas – de quê ? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.Contanto que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
- É a hora da embriaguez ! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embragai-vos sem cessar !
De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

26 de mai. de 2009

Deixando "o" da Modernidade e citando "o" Contemporâneo.

Boa noite.

Não leve a citação abaixo pra cama pois, vc poderá não dormir tão cedo.
"A plena apreensão da morte só pode ser feita ao considerá-la através da vida e tanto em cada um de seus momentos, quanto na atividade e paixão dos grandes conjuntos. E não no momento datado em que ela aparece como acontecimento temporal".

SARTE, Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.48.

25 de mai. de 2009

Aufklärung - partes 3 e 4

Partes: 1 e 2 - 24/05/09
Partes: 3 e 4 - 25/05/09
Partes: 5 e 6 - 16/08/09
Partes: 7 a 10 - 08/05/10

3 - É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade.
Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito , emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.

4 - Que, porém um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento.
Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

Bom dia a todos e boa semana.

24 de mai. de 2009

Aufklärung - partes 1 e 2

Partes: 1 e 2 - 24/05/09
Partes: 3 e 4 - 25/05/09
Partes: 5 e 6 - 16/08/09
Partes: 7 a 10 - 08/05/10

5 de dezembro de 1783, por kant.
Resposta à pergunta: Que é esclarecimento (Aufklarung).
Diz Kant:

1 - Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].

2 - A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz às vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.