4 de out. de 2009

Cartas a um jovem poeta

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta / A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. São Paulo. Globo, 2001. p.51-55.

Roma, 23 de dezembro de 1903.
Meu caro Sr.Kappus,

NÃO QUERO QUE FIQUE sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a sua solidão é grande, alegre-se com isso. Que seria, com efeito, uma solidão (faça essa pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer, por mais banal e barata que fosse; por uma aparência de acordo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam essas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino, e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isso não o deve desorientar. O que se torna preciso é, no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes, porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.

Se depois um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem ligação alguma com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança pela defensiva e pelo desprezo - uma vez que a não-compreensão significa solidão, ao passo que defensiva e desprezo equivalem à participação nas próprias coisas cujo afastamento se deseja?

Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro - o que importa, apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer suas relações com os homens. Aliás, quem lhe diz que as tem? Sua profissão, bem o sei, é dura, cheia de contradições para si; previ a sua queixa e sabia que ela havia de vir. Agora que chegou não o posso tranqüilizar, mas apenas aconselhar-lhe que examine se todas as profissões não são assim cheias de exigências, de hostilidade contra o indivíduo, como que ensopadas do ódio daqueles que, mudos, resmungando, se tiveram de conformar com o simples dever. A posição em que agora deve viver não é mais carregada de convenções, preconceitos e erros do que todas as outras. Se há algumas que exigem bem uma liberdade maior, não existe nenhuma que seja larga e ampla em si, relacionada com as grandes coisas de que se compõe a verdadeira vida. Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos desprender-se-ão dele como de um morto, embora se encontre no meio vibrante da vida. O que agora deve experimentar, caro Sr. Kappus, em sua qualidade de oficial, tê-lo-ia sentido em qualquer das profissões existentes. Mesmo que, fora de qualquer posto, tivesse procurado apenas contatos leves e independentes com a sociedade, este sentimento constrangedor não lhe seria poupado. Por toda parte as coisas são assim. Mas isso não é um motivo de angústia ou tristeza. Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança, tão tristes e tão felizes - e, quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor.

Se porventura lhe for temível e penoso pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, por não poder mais crer em Deus que nela se encontra por toda parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr. Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes, que o senhor ainda não o possuiu? Aliás, quando o teria possuído? Parece-lhe que uma criança o possa segurar, a Ele que os homens custam a carregar e cujo peso esmaga os anciãos? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa perder como um seixo? Não lhe parece, antes, que aquele que o teve pode por Ele ser perdido? Se porém reconhece que Ele não existia na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi iludido pelo sua saudade e Maomé enganado por seu orgulho; se percebe com espanto que Ele não existe nem mesmo nesta hora em que falamos d’Ele - que coisa então o autoriza a sentir a falta de alguém que nunca foi e a procurá-lo como se estivesse perdido?

Por que não pensar que Ele é o vindouro, aquele que está por vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as folhas? Que é que o impede de projetar o seu nascimento para os tempos posteriores e viver a sua vida como um dia belo e doloroso de uma grandiosa gravidez? Não vê como tudo o que acontece é sempre um começo? Não poderia ser, então, o começo d’Ele, pois todo começo em si é tão belo? Se Ele é o mais perfeito, não deve ter havido algo menor antes d’Ele para que Ele se pudesse escolher a si mesmo dentro da plenitude e abundância? Não deverá ser Ele o último, para encerrar tudo em si? Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos. Começamos pelo pormenor, pelo insignificante (posto que venha do amor), depois pelo trabalho e pelo repouso, por um silêncio ou por uma pequena alegria solitária; por tudo o que fazemos, sem participantes ou aderentes, iniciamos Esse que não podemos compreender, do mesmo modo que os nossos antepassados não nos puderam compreender a nós mesmos. No entanto, esses seres desaparecidos há muito estão em nós, em nossos pendores, pesando sobre nosso destino, zumbindo em nosso sangue, emergindo num gesto que sobe do âmago dos tempos.

Existe algo que lhe possa tirar a esperança de estar futuramente n’Ele, no longínquo, no extremo?

Festeje o Natal, caro Sr. Kappus, com o pio sentimento de que talvez Ele, para começar, aguarde do senhor justamente essa angústia de viver. Talvez justamente esses dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n’Ele, como outrora, quando criança o senhor n’Ele trabalhou palpitante. Não seja impaciente e mal-humorado. Lembre-se de que a menor coisa que podemos fazer consiste em lhe dificultar tão pouco o nascimento quanto a terra dificulta o advento da primavera, quando ela tem de vir.

Fique alegre e tranqüilo.
Seu
Rainer Maria Rilke


* Texto trabalhado em sessões de psicoterapia.

O Medo de Errar

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo – Crônicas. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 1999.

O MEDO DE ERRAR
13 de Setembro de 1969

A um suíço inteligente perguntamos uma vez por que não havia propriamente pensamento filosófico na Suíça. Como resposta, nosso interlocutor lembrou-me que seu país tem três raças, quatro línguas. De onde podemos concluir, três ou quatro pensamentos. Que esta nação que funciona, digamos, quase perfeitamente, precisa constantemente procurar um equilíbrio, fazer uma suma de idéias, reduzi-las àquela que, sem ferir completamente as outras, satisfaça mais ou menos a todos. Assim, quem pensa espera de antemão uma vitória apenas média. As idéias de cada um se encontram e param no seu ponto de contato com as outras. Ora, o pensamento filosófico é por excelência aquele que vai até o seu próprio extremo. Não pode admitir transigências, senão a posteriori. Nenhuma obra filosófica poderia ser construída tendo como um de seus princípios tácitos a necessidade de se chegar somente até certo ponto.

Este é mais um dos aspectos da neutralidade suíça. Esta não funciona apenas em relação a fins exteriores. É um princípio que dirige a paz interna, exatamente tendo em vista a mistura de raças. É um princípio, mais do que de paz, de apaziguamento. Ser neutro não é solução a determinado caso, ser neutro tornou-se, com o tempo, uma atitude e uma previdência.
Esse admirável país encontrou sua fórmula própria de organização social e política. Mas que pouco a pouco estendeu-se a uma fórmula de vida.
O amálgama de tendências e necessidades formou uma cultura e entranhou-se de tal forma nos indivíduos que, se esta nação não fosse formada de vários grupos raciais, se poderia cair na facilidade de falar em caráter racial.
Pode-se falar no entanto em caracteres nacionais – e um dos mais evidentes é o da atitude mental de precaução.

A impressão que se tem de um suíço é a de um homem que vive em segurança e, mais do que isso, que sofre da ânsia de segurança. A propósito disso poder-se-iam lembrar várias causas gerais, como situação geográfica, dificuldade de produção agrária etc.
Essa atitude de previdência encontra, a cada momento, motivo de se concretizar. E se estende até onde já seria desejável que se interrompesse.
Assim, por exemplo, é comum, pelo menos em Berna , ver-se metade de uma platéia retirar-se antes de começarem as músicas modernas. Às vezes antes de peças que serão executadas pela primeira vez na Suíça.

No entanto o povo suíço gosta realmente de música, sinceramente, sem nenhum esnobismo. O fato é motivado particularmente pelo horror que o povo tem pela música moderna ou pela literatura moderna ou pela pintura moderna: a palavra moderna soa um pouco como escândalo, como aventura ainda suspeita. Porém, mais amplamente e mais profundamente, esse fato vem de que o suíço teme errar na sua admiração.
Os suplementos literários de jornais suíços descobrirão cartas sepultas de Vigny – adivinharão pensamentos ocultos de Madame de Staël – atacarão, mesmo com certa ferocidade cômoda, o várias vezes falecido Renan – desculparão Victor Hugo nas suas brigas com amigos – e se aparece oportunidade de comemoração de centenários as páginas se cobrirão de comentários a respeito; há mais centenários na terra do que um homem atual pode prever.

Não é apenas por gosto e por respeito à tradição. É medo de se arriscar. Um escritor vivo é risco constante. É homem que pode amanhã injustificar a admiração que se teve por sua obra com um mau discurso, com um livro mais fraco.
O povo suíço nada recebeu gratuitamente. Tudo nessa terra tem marca de nobre esforço, de conquista paciente. E não foi pouco o que eles conseguiram – tornar-se um símbolo de paz.

Esse estado de alta civilização – onde a expressão homem civil tem realmente um sentido e uma força – eles o manterão a todo custo, com austera previdência, com dura disciplina mental, com a precaução contra o erro.

O que não impede que tanta gente, em silêncio, se jogue da ponte de Kirchenfeld, sem que os jornais sequer noticiem para que outros não o repitam. De algum modo há de se pagar a segurança, a paz, o medo de errar.

* Texto trabalhado em sessões de psicoterapia.