22 de mai. de 2010

O Executor do Amor - Irvin D.Yalom

INTERCÂMBIO HUMANO
Cleiton Rezende

Gorda Senhora é o titulo de uma história do livro O Executor do Amor – e outras estórias sobre psicoterapia, do autor e psiquiatra americano Irvin D. Yalom. Os contos apresentados na obra são verídicos mas, que sofreram modificações para preservar a identidade dos pacientes.

Na ocasião em que procurou o atendimento psicológico, Betty, 27 anos, filha única, solteira e que trabalhava como relações públicas em uma instituição varejista, pesava 115 quilos e media, apenas, 1m e 55cm. Betty cresceu em um pequeno rancho no estado americano do Texas e, aos 12 anos de idade ficou órfã de pai. De acordo com o seu relato, desde que tinha 21 anos, salvo breves períodos, ela engordou.

Nas primeiras sessões Yalom percebe a “superficialidade” de Betty ao falar de si própria. Conforme Yalom (1989, p.86), “ela falou todas essas coisas num tom alegre de conversa, como se estivesse falando sobre uma outra pessoa, ou como se ela e eu fossemos estudantes da faculdade trocando histórias no dormitório”. A incapacidade de se relevar e a sua necessidade de “divertir” o terapeuta nos demonstrou a má-fé de Betty.

Sartre (1997) conceituou como má-fé não somente o ser humano pelo qual se revela negatividades no mundo mas, também, o que pode tomar atitudes negativas com relação a si.

Conforme Yalom (1989, p.94),
Betty disse que não sabia como ser de outro jeito: eu estava lhe pedindo para livrar-se de todo o seu repertório social. Revelar-se? Se ela fosse se revelar, o que mostraria? Não havia nada lá dentro. Ela estava vazia. (A palavra vazia iria surgir com freqüência cada vez maior com o prosseguimento da terapia. O “vazio” psicológico é um conceito comum no tratamento das pessoas com transtornos de alimentação).

No existir humano existem dificuldades e o psicoterapeuta existencial busca compreender como as pessoas lidam com as suas atribulações. O foco não é o problema ou a doença e, sim, o ser, ou seja, a vivência da situação. Como a pessoa está lidando com sua existência, como se envolve com sua vida, o que está fazendo com o vivido: o que fala, sente e como o expressa.

A condição sine qua non na psicoterapia existencial é que o cliente assuma a responsabilidade de seus atos e dificuldades, para que, só assim, seja possível modificar a situação.

Outro dado relevante apresentado por Yalom, nos fala sobre o caminho a seguir para trabalhar as questões centrais na psicoterapia. Segundo ele, esse percurso só será aberto quando o paciente começar a desenvolver sintomas com respeito ao relacionamento com o seu psicoterapeuta.

Após algumas sessões, Betty, que havia tido uma breve depressão, apresentou melhoras; estabeleceu uma vida social; começou a participar de um grupo de auto-ajuda e tomou a iniciativa de cuidar de seu corpo. Mas, todo esse movimento levou Betty a ter sintomas físicos (dores de cabeça e nas costas, dificuldades respiratórias), pois, ela associou a sua redução de peso com a perda de peso que o pai tivera em decorrência do câncer. Sendo assim, ela pensou que poderia ficaria propensa a desenvolver a mesma moléstia.

Conforme Yalom (1989, p.97),
esses sentimentos perturbadores compunham em grande parte os problemas de peso de Betty. Não apenas a comida representava a sua única forma de gratificação, não apenas era uma maneira de amenizar seu sentimento de vazio, não apenas a magreza evocava a dor da morte do pai, como ela também sentia, inconscientemente, que perder peso resultaria na sua morte.

Yalom nos relata que Betty, após falar sobre essas questões que a intranqüilizava, obteve avanços significativos no tratamento. Ela ingressou em um programa para pessoas com transtornos da alimentação, submeteu-se a exames físicos e a uma bateria de testes psicológicos. Betty, também, iniciou uma dieta líquida, começou a fazer diversos exercícios físicos e a dançar. Após 3 meses de trabalhos intensos ela perdera quase trinta quilos.

Em relação à palavra, Queiroz (2004, p.2) nos diz que:
a palavra desafia a dor. A palavra habita nosso corpo inteiro, desde o olhar até o silêncio. A palavra mora encarnada em nós. Se falamos onde dói, a palavra alivia nossa ferida. A palavra nos abre as asas para sobrevoar outras distâncias. A palavra, entre tudo, desbrava nossas divisas. Se nos expressamos, nos tornamos mais claros. Se nos escutamos, ganhamos novos pontos de vista para entender o mundo, mesmo tendo que secar as lágrimas. Ao nos manifestarmos, reinventamos nosso destino e recriamos nosso percurso.

Dando continuidade ao processo, Betty seguia com as atividades e reduzindo de peso mas, ela começou a ter experiências que, até então, eram desconhecidas. Ela notou que alguns homens passaram a conversar com ela, sendo que, um deles, a acompanhou até o carro; o seu cabeleireiro lhe ofertou uma massagem capilar sem ônus e, ainda segundo Betty, seu chefe fortuitamente lhe olhava os seios. Mas, apesar de ter fantasias sexuais, Betty jamais tivera qualquer contato físico com um homem. Fruto de uma sociedade que nega a obesidade entre outras características apontadas como “defeitos”, Betty ficou sentenciada à frustração sexual.

Conforme Augras (2004, p.45),
de um ponto de vista existencial cabe acentuar que a atividade sexual não é apenas principio de realização de desejos e descarga de energia, mas essencialmente encontro e comunicação. Da mesma maneira que assumir a integralidade do corpo é conscientizá-lo em seu duplo papel de delimitação e comunicação entre mundo interno e externo, unir-se sexualmente é vivenciar a dupla situação de complementaridade e separação.

Segundo Goffman (1988, p.13) nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.

A partir do conteúdo de cunho sexual foi possível evocar de Betty lembranças nada agradáveis de rejeições e, principalmente, que o seu pai havia desejado ter tido um filho homem ao invés dela.

De acordo com Yalom (1989, p.103),
nós logo estávamos passando sessões inteiras falando a respeito de seu pai. Chegara o momento de desenterrar tudo. Eu a arrastei a reminiscências e a encorajei a expressar tudo o que ela podia lembrar sobre sua enfermidade, sua morte, sua aparência no hospital quando ela o viu pela ultima vez, os detalhes do funeral, as roupas que ela usava, o discurso do ministro, as pessoas que compareceram.

Nesse estágio, a psicoterapia passou a ocorrer três vezes por semana e foi possível explorar com profundidade e intensidade as lembranças de Betty com o seu pai. O imprescindível dentro do tratamento foi à conscientização de Betty ter construído uma imagem do pai dentro dos modelos de sucesso social que, até então, ela conhecia. Destruir essa imagem e construir uma representação do pai como ser humano com defeitos e qualidades independente de sua interferência enquanto filha foi o começo da construção dela por si própria.

Podemos dizer que a psicoterapia fenomenológica existencial reconhece e enfatiza que o ato de conhecer e de se reconhecer, deve ser uma atitude diferente. É dessa forma que a fenomenologia instaura um movimento regressivo que, sucessivamente, faz aparecer as representações sociais e históricas nas explicações e definições que foram dadas às coisas e ao mundo pelo cliente, para que, ele mesmo, compreenda-se no mundo mas, saiba-se diferente deste e nele possa atuar.

Na história intitulada “Gorda Senhora”, Yalom nos revelou que sempre se sentiu repelido por mulheres obesas e que nunca havia tentado descobrir as origens desses deploráveis sentimentos. Os reais motivos foram poucos explorados, mas o supremo desafio da contratransferência e, por essa exata razão, ele se ofereceu, naquele momento e naquele lugar para ser o terapeuta de Betty. Yalom após 25 anos de prática decidiu que era hora de mudar. Era hora de se permitir viver e re-significar a sua relação com mulheres obesas, o que no principio, era uma tarefa inconcebível.

Conforme Yalom (1989, p.83),
para o psicoterapeuta, esse domínio, esse inesgotável currículo de autodesenvolvimento em que ninguém se gradua é conhecido como contratransferência. Enquanto a transferência se refere aos sentimentos que o paciente erroneamente vincula (transfere) ao terapeuta, mas que de fato se originam de relacionamentos anteriores, a contratransferência é o reverso – sentimentos irracionais semelhantes que o terapeuta tem em relação ao paciente.

Mesmo tendo passado os seis primeiros meses olhando poucas vezes para a sua paciente e jamais tê-la tocado, nem mesmo com um aperto de mão, Yalom se permitiu vivenciar esse desafio. Houve um intercâmbio humano que, com certeza, eles jamais se esquecerão. Um intercâmbio que, segundo Yalom, lhe tirou a respiração e que ele detestaria acabar.

Enfim, por motivos profissionais, Betty teve que interromper a psicoterapia e, podemos dizer que os avanços obtidos neste caso foram, em função, da contratransferência.

BIBLIOGRAFIA

AUGRAS, Monique. O Ser da Compreensão – Fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 2004.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1988.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Entretantos. LASTRO: Belo Horizonte, 2004.

SARTE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

YALOM, Irvin. D. O Executor do Amor. Porto Alegre: Artes Médicas Sul Ltda, 1989.

20 de mai. de 2010

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si (1)

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si
Cleiton Rezende

INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe analisar e descrever as observações feitas nos pacientes masculinos, internados em uma enfermaria coletiva do Hospital São Bento, em Belo Horizonte, nos anos de 2006 e 2007.

Os conceitos necessários para a compreensão deste trabalho foram escritos e fundamentados recorrendo-se a autores como Sartre (1997), Husserl (1985), Feijoo (2000), Forghieri (1996) entre outros.

Pretende-se identificar, analisando reflexivamente, os sintomas que permitiram, com as ferramentas conceituais da ciência da psicologia fundamentada na teoria de Jean-Paul Sartre, uma intervenção terapêutica da Psicologia Humanista Existencial.

Os pacientes observados e atendidos aguardavam suas respectivas cirurgias ou se recuperavam delas. Muitos deles, inclusive, apresentavam um agravante: novas patologias desenvolvidas dentro do próprio hospital, além, das já diagnosticadas.

As causas mais observadas das internações eram: acidentes automobilísticos ou de moto, atropelamentos, incidentes no trabalho ou em casa, rejeições de próteses ou do próprio membro reimplantado e, de forma particular, a osteomielite.

Conforme Porto (2001), a osteomielite é uma patologia onde os ossos, que são tecidos com um grande fluxo sangüíneo ficam infectados descontroladamente. A osteomielite, na maioria dos casos, espalha-se causando a interrupção desse fluxo e, conseqüentemente, a morte do osso, denominada de necrose óssea. Geralmente o tratamento é feito utilizando antibióticos administrados durante várias semanas antes da intervenção cirúrgica, preparando o organismo para se extrair a articulação infectada e implantar uma artificial. Mesmo assim, em alguns casos, é necessário recorrer a uma nova intervenção cirúrgica, quer para fundir os ossos da articulação, quer para amputar o membro.

A prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial será apresentada como instrumento efetivo e eficaz de diagnóstico e tratamento, que sinaliza para o paciente a necessidade de buscar o seu processo individual e inadiável da construção do seu “Ser-para-si” que, só poderá ser realizada por ele mesmo.

Para isso, este trabalho foi dividido em 4 partes, a saber: a fundamentação teórica, o método aplicado, a reflexão da observação e considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os conceitos do filósofo alemão Edmund Husserl (1985) sobre a não existência de uma “consciência em si”, mas de uma consciência intencional situada na realidade do mundo, forjaram o alicerce da teoria do filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Para Husserl (1985) não existe uma consciência em si, já que a consciência de nenhum ser humano tem o poder de dar realidade ao objeto nem ao mundo real. Ele afirma que a realidade do mundo, tanto a real quanto a abstrata, existe antes da consciência individual e particular de qualquer pessoa, antes da razão desta mesma pessoa.

A consciência, então, está no mundo, faz parte da realidade deste mundo. Por isso, não existe para ele uma consciência em si. Existe única e tão somente a consciência de alguma coisa, a consciência de alguma realidade. Esta é a definição de consciência intencional.

Em 1943, Jean-Paul Sartre publicou seu principal livro de teoria filosófica, intitulado “O ser e o nada”, onde explica de uma forma inovadora o que é e como se comporta o sujeito do conhecimento. Sartre afirma que o sujeito do conhecimento é o ser humano que, ao longo de sua vida, constrói-se a si próprio transformando-se em “Ser-para-si”.

Na teoria sartreana todo homem nasce como “Ser-em-si”, isto é, sem nenhuma consciência de si nem do mundo. Nasce como um nada. Ele é o nada. E, ao longo de sua vida, ele constrói sua consciência – a mesma definição de consciência intencional de Husserl – e, se torna humano somente quando consegue transformar-se em um “Ser-para-si”.

O Ser-para-si em Sartre é aquele homem que percebe sua própria existência, sabe que sabe e compreende que deve, necessariamente, fazer-se humano no contato com o mundo e com os outros seres humanos. Por isso, a constante afirmação na teoria sartreana de que o homem nascido como Ser-em-si, só se torna humano quando consegue construir-se e se transformar em Ser-para-si. Em outras palavras, o homem nasce como um “nada”, como um Ser-em-si e deve buscar, ao longo de toda sua existência, construir-se como Ser-para-si.

O homem apresenta-se como uma escolha a fazer. Antes de qualquer coisa ele é a sua existência no momento presente, e está fora do determinismo natural; o homem não se define previamente a si próprio, mas em função de seu presente individual. Não há uma natureza humana que se lhe anteponha, mas é lhe dada uma existência especifica num dado momento. (SARTRE, 1970, p. 25)

Mas, o ser humano só torna-se Ser-para-si através de suas escolhas conscientes. Este processo particular é mais facilmente observável num estado de vida em que o indivíduo encontra-se enfermo e jogado na enfermaria de um hospital onde desconhece por inteiro, qualquer outro com o qual é obrigado a conviver.

Conforme Cunha (2007), na etimologia, a palavra “doença” vem do latim e significa padecimento (estado resultante de disfunções orgânicas pela perda da propriedade auto-reguladora de um sistema ou organismo de um indivíduo, que lhe permite manter o seu estado de equilíbrio). E a palavra “enfermidade”, também do latim, significa alteração danosa do organismo. O dano patológico seria, então, proporcionalmente maior, podendo ser estrutural ou funcional, ou ainda, os dois ao mesmo tempo.

Neste trabalho serão usadas estas palavras como sendo equivalentes, já que o foco não é a ciência da patologia humana em seu corpo físico.

Dito isso, temos que a enfermidade é para Sartre uma facticidade. Ou seja, a realidade como é dada a ser percebida pelo sujeito sem que ele possa interferir pela vontade.

O importante é saber que o enfermo não está debilitado apenas em seu corpo físico biológico. Mas, concomitantemente, fragilizado em suas funcionabilidades mental e emocional.

A psicologia fundamentada conceitualmente no existencialismo sartreano nos faz, necessariamente, deduzir com raciocínio lógico, que estas fragilidades mental e emocional - conseqüências inevitáveis da patologia do corpo físico - são tão ou mais graves do que a enfermidade física concretamente verificável por exames clínicos e laboratoriais, motivo evidente, que determina a hospitalização de um paciente.

O foco deste trabalho serão as “fragilidades” e os “desequilíbrios” mentais e emocionais resultantes da enfermidade orgânico-biológica, que num primeiro momento, faz com que o paciente hospitalizado chegue muito próximo da inconsciência de sua própria vida, negando a possibilidade da própria cura.

Entretanto, como teoriza Sartre, o homem como Ser-para-si não tem um modelo a seguir. Ele é um ser indeterminado e se faz a si mesmo através de suas escolhas ao longo da vida.

A característica mais original da obra de Sartre é a preocupação de expressar de maneira metódica e sistemática, o processo de construção do Ser-para-si, desenvolvendo, objetivamente, os conceitos de facticidade, absurdo e liberdade. E, como estes conceitos estão ligados aos conceitos de liberdade, escolha, angústia, náusea e situação-limite. Para explicar e demonstrar estes conceitos acima nomeados, Sartre usa o método da redução fenomenológica.

Na teoria sartreana, fundamentalmente, na obra “O Ser e o Nada”, o estado de angústia e náusea é conseqüência inexorável da importância indiscutível e absoluta dada para a responsabilidade de cada indivíduo na construção de si mesmo como ser humano.
Sartre afirma que diante de todo e cada fato de sua vida, o indivíduo tem a liberdade de escolha. Esta liberdade não é opcional, é uma imposição que estará sempre fundamentada nos valores morais e éticos de cada ser humano. É, por isso mesmo, que a máxima da teoria existencialista de Sartre é afirmar que todo homem sempre é livre, “ele está condenado à liberdade”.
As observações e os atendimentos realizados durante os Estágios Supervisionados IV e V vivenciados em 2006 e 2007 na enfermaria coletiva do Hospital São Bento, serão aqui analisadas e baseadas nos conceitos sartreanos mencionados nos parágrafos anteriores e, explicados teoricamente ao longo do texto. Foi possível observar vários pacientes e escolher alguns deles com os quais se pode trabalhar.

Agora, então, é possível analisar e explicar conceitualmente neste trabalho, como foram feitas as intervenções psicológicas aplicadas nos pacientes ortopédicos atendidos.

No existencialismo sartreano, o homem como ser pensante compreende o caráter absurdo da existência, porque compreende racionalmente que a vida é carente de sentido. A realidade - entenda-se o nascer, viver e morrer - para Sartre é desprovida de razão de ser, é absurda. A realidade do mundo reduz-se pura e simplesmente num “estar-aí” gratuito, absurdo e sem sentido.

Contudo, o homem dificilmente consegue conviver com a simples constatação deste absurdo, da constatação de que ele é “coisa” entre as outras coisas. Então, ele sai em busca de algo que lhe permita deixar de ser apenas coisa, elemento, para ser projeto.

Assim é pela própria opção e efetivação da escolha em cada momento de sua vida e, principalmente, nas situações-limite, que a pessoa pode transformar a si mesma em Ser-para-si.

Conforme Rohmann (2000, p. 359), o mundo das coisas (o en-soi, ou ‘em si’), ao contrário, pode ser inerte e contingente, mas também é auto-suficiente e completo, cada objeto contendo sua própria essência. Nossas interações com o mundo exterior – possuir, usar, consumir ou controlá-lo – e nossas relações semelhantes com outras pessoas são tentativas de captar o ‘em si’, descobrir uma essência e se completar. Contudo, o em si pode tornar-se uma influência excessiva; alguém absorto no mundo, evitando responsabilidade pessoal e opções ativas, é como um objeto, inconsciente e impotente, vivendo na má-fé.

Para Sartre (1997), a consciência humana (o pour-soi, ou ‘para si’) é inquieta, ativa e aberta à experiência, mas sem conteúdo inerente. O ser humano procura esforçar-se na busca de projetos que o definam como Ser-para-si. A liberdade é essencialmente humana e, só possui significado na ação, na capacidade do homem impor modificações no mundo real. Assim, por ser livre, o homem é conseqüentemente responsável por tudo o que escolhe e faz.

As intervenções psicológicas aplicadas foram no sentido de mostrar a cada paciente a necessidade indispensável no processo de cura dele próprio; buscar seu caminho, seu processo de construção do Ser-para-si próprio, único e individual.

18 de mai. de 2010

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si (2)

O MÉTODO APLICADO

O método fenomenológico herdado da teria de Edmund Husserl e utilizado por Sartre é chamado de redução fenomenológica. Neste ponto do trabalho, explica-se de forma objetiva, porém, simplificada, tanto o conceito teórico da redução fenomenológica bem como a forma como ela deve ser aplicada no atendimento psicológico.
Primeiramente, o observador deve procurar compreender a realidade real e concreta em si mesma, para além e para aquém do relativismo das circunstâncias externas aparentes no momento da observação.

Na prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial é feita a observação presencial para identificar e analisar no processo de tratamento, o paciente, para além do prontuário ou, como diria Sartre, para além das “idéias e explicações já existentes” que os outros o rotularam. Em seguida, separar esta realidade real e concreta em si mesma das confusões que se estabeleceram entre ela e suas definições e conceitos.

Nas intervenções presenciais com o paciente é necessário o estímulo direcionado para que ele identifique a realidade / problema que ele precisa transformar, de suas representações históricas. O paciente precisa compreender o contexto geral no qual encontra-se inserido e, também, identificar separadamente qual é seu problema de cunho psicológico essencial e específico que, alimenta e reconstrói repetidamente sua enfermidade físico-corporal.

Nas intervenções realizadas durante os estágios, fonte de observação para este trabalho, o procedimento empregado para averiguar a vivência de cada paciente hospitalizado atendido foi estabelecer o envolvimento existencial e reflexivo.

Desta forma foi possível encontrar meios de utilização do método fenomenológico para a intervenção psicoterapêutica utilizada.

Cada paciente estimulado por este método, lentamente, porém forçosamente, começou a compreender que só ele define e projeta a sua vida - ou nova vida - após o trauma da dilaceração parcial do próprio corpo físico. Aí é que se dá o que deve ser identificado como construção do Ser-para-si.

Conforme Binswanger (citado por Forghieri, 1996), na prática da ciência da psicologia não há o intuito de se “chegar a um esclarecimento filosófico-fenomenológico da estrutura transcendental do ser humano enquanto ”ser-no-mundo”, mas, sim, empreender uma análise existencial ou empírico-fenomenológica de formas concretas de existência”.

Para Forghieri (1996), no envolvimento existencial, o pesquisador precisa iniciar o seu trabalho procurando sair de uma atitude intelectualizada para se soltar ao fluir de sua própria vivência. Após compreender a vivência do cliente, o pesquisador envolvido nela, pode obter um entendimento global pré-reflexivo.

De acordo com Forghieri (1996), (...) o pesquisador procura estabelecer um certo distanciamento da vivência, para refletir sobre essa sua compreensão e tentar captar e enunciar, descritivamente, o seu sentido ou o significado daquela vivência em seu existir. Porém, o distanciamento não chega a ser completo; ele deve sempre manter um elo de ligação com a vivência, a ela voltando a cada instante, para que a enunciação descritiva da mesma seja a mais próxima possível da própria vivência.

Segundo Feijoo (2000), o método fenomenológico preocupa-se em mostrar, e não em demonstrar. Assim, nos leva aos sentidos relevantes, que buscam os caminhos das dificuldades que impedem a construção do Ser-para-si.

Então, a redução fenomenológica conceituada por Husserl e apropriada por Sartre é o método para a ciência da psicologia pesquisar a vivência do cliente e as possibilidades de intervenções psicoterapêuticas especificas. Este método enfatiza que o ato de conhecer e de se reconhecer, deve ser uma atitude diferente.

De acordo com Rohmann (2000, p.162,163), Husserl propunha o que chamava de ‘redução fenomenológica’, que requeria que se pusesse ‘entre parênteses’, ou que se pusesse de lado, todas as suposições convencionais – inclusive a questão da própria existência dos objetos ou das impressões –, para se examinar as experiências da vida de uma perspectiva nova, imparcial.
É dessa forma que a fenomenologia (a intervenção psicológica fenomenológica) instaura um movimento regressivo que, sucessivamente, faz aparecer às representações sociais e históricas nas explicações e definições, que foram dadas às coisas e ao mundo pelo paciente, para que, ele mesmo, compreenda-se no mundo, mas se saiba diferente deste e nele possa atuar. 

REFLEXÃO DA OBSERVAÇÃO

Este trabalho está apresentando o adoecimento e a internação - enfatizando aquela causada pela osteomielite - como uma das mais significativas “situações-limite” na vida do paciente. A conseqüência mais evidente da osteomielite é a necrose óssea, evidenciada na maioria das vezes, que causa a amputação do membro do corpo mais afetado pela doença.

A constatação e a tomada de consciência desta realidade pelo paciente, instala nele o sentimento de falta de sentido diante de sua existência. A princípio, ele não encontra nenhuma explicação racional que possa ajudá-lo a se posicionar diante do fato concreto da doença e suas conseqüências, no caso, a dilaceração de seu próprio corpo físico.

Na prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial, baseada especificamente na teoria de Jean-Paul Sartre, nenhuma informação exterior que construiu certezas na vida do paciente, lhe oferece resposta adequada para que ele se posicione nesta sua nova existência concreta. É a consciência inexorável do absurdo da existência.
Provavelmente, vários pensamentos aleatórios passam pela mente do paciente. Entretanto, nenhum deles lhe oferece a maneira de ser e agir com este corpo modificado, definitivamente, pela doença.

Neste momento, o existencialismo sartreano, identifica o ponto crucial do nascimento da angústia e conseqüentemente da náusea. É a impotência do indivíduo diante do que lhe é posto por esta realidade concreta. É a “facticidade” da existência, o homem lançado entre as coisas e situações que lhe foram impostas e não escolhidas por ele. E a constatação de que sua própria vida não está em seu controle. Sua vida é uma gratuidade porque ele existe. Neste existir, ele passa por problemas sem razão que a justifique.

Conforme Sartre (1997), com a consciência nascente a partir da juventude, o homem entende que a vida é um absurdo, mas não consegue conviver com esta idéia. A constatação do absurdo faz com que o indivíduo antes de cada ação de sua vida cotidiana, seja obrigado a escolher e ir se construindo como Ser-para-si.

As realidades do mundo, iniciando pelo viver, morrer ou se auto exterminar, as limitações físicas, emocionais, culturais, econômicas, as situações limite, são, enfim, a facticidade. A facticidade são estas opções dadas. O homem não escolhe as opções, mas, entre estas opções. Na sociedade atual as escolhas não são mais dicotômicas, não há mais o certo e o errado, o que facilitava as opções. Hoje vivemos numa sociedade plural, onde a diversidade de opções dadas é fato. Por isso, a angústia diante das escolhas é bem maior, assim como a responsabilidade pelas decisões tomadas.

A condição de paciente internado, arrancado da vida social e impotente diante do seu ontem, do seu agora e de seu amanhã, leva o para circunstâncias obscuras da vida. O paciente internado depara consigo mesmo no presente, e isso é, basicamente, sofrimento. Ele experimenta uma inquietação provocada pela tomada de consciência de sua nova condição e da dilaceração de sua existência, que o obriga, necessariamente, a tomar decisões a partir desta sua outra realidade.

O homem nascido como Ser-em-si, num espaço e num tempo determinado, encontra na facticidade da vida, as opções de escolhas que ele deve, necessariamente, fazer para construir-se com Ser-para-si. O Ser-para-si anterior à doença era outro. A facticidade era outra. O indivíduo na fragilidade da situação de paciente de enfermaria num hospital é levado, inexoravelmente, a compreender que a vida é mudança, que nada e ninguém permanecem os mesmos. Sempre existe algo acontecendo e não há um instante sequer na vida de qualquer pessoa igual ao que já foi por ela vivido.

Portanto, a tomada de decisão que orienta o cotidiano de sua vida se dá a cada instante com opções diferentes inerentes à sua vontade. É preciso compreender e refletir a experiência que ele está vivendo naquele dado instante.

Na introdução do livro “O ser e o nada”, Sartre (1997) afirma que a cultura é constitutivamente social e histórica. Ela é o dado concreto sobre o qual cada indivíduo constrói sua hierarquia de valores com o objetivo específico de exercer a liberdade - escolhas entre as opções dadas - e construir seu Ser-para-si. Na mesma obra citada, Sartre afirma que o tempo e o espaço são originais e concretos. Mas, para o indivíduo, tornam-se psíquicos.

(...) a noção de tempo que é fixada na consciência de cada indivíduo apresenta para ele a noção de espaço, o lugar onde as conseqüências de suas escolhas ficarão registradas para o outro. Desta forma, o homem torna-se humano em seu existir histórico, que é a relação consciência/mundo; a comunicação das consciências interna e externa e as relações intersubjetivas. (SARTRE, 1997, p. 208-209)

Este homem reduzido à “categoria” de paciente precisa, então, se reinventar. Esta reinvenção é a construção, agora diferenciada no seu fazer, que irá apresentar um novo Ser-para-si. Aquele que nasce depois da enfermidade e da experiência dolorosamente indizível da internação hospitalar, principalmente numa enfermaria, aonde o novo eu e o outro são desconhecidos, no mais profundo significado de desconhecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho demonstrou, através da teoria de Sartre, que o tempo real é imediato, já que é negado no concreto para ser reconstruído psiquicamente. Nem o tempo real nem o espaço real oferecem ao homem nenhum sentido. Este sentido é constituído na consciência do sujeito para exercer sua liberdade.

Os homens não têm a mesma noção de tempo e espaço. Cada um em função das circunstâncias de sua vida, dá uma dimensão diferente ao seu passado, ao seu presente e ao seu futuro. Cada um encara o seu tempo de forma individualizada. Por isso, alguns têm maior clareza de suas idéias no presente.

Foi verificado ainda que, quanto mais fragilizado está o homem, por razões diversas - neste estudo, esta razão foi a enfermidade no paciente internado - mais ele transforma seu passado em presente quando lembra de algum acontecimento, que lhe faz reconhecer seu antigo Ser-para-si.
A lembrança lhe traz as mesmas sensações de acontecimentos vividos. Por isso, para este paciente o passado torna-se vivo no presente. E, da mesma maneira, acontece com sua perspectiva de futuro.

A observação presencial em todos os momentos dos estágios, mostrou com clareza verbalizada ou não pelo paciente, que ele, ao deparar consigo, chocou-se em rota de colisão com o absurdo, a falta de sentido de sua existência.
Tudo isso foi observado nas externalizações dos pacientes. Em suas atitudes que, sem dúvida de interpretação, demonstravam tristeza, depressão, solidão e desamparo.

Ou seja, o paciente internado não conseguia lidar com a idéia do nada. Dito de outra forma, ele não compreendia a gratuidade da vida, já que só percebia a falta de sentido que lhe trazia a inexorabilidade da morte, do fim de seu corpo físico.
Cientificamente a biologia explica que a dor física é registro mental do cérebro. É o cérebro que identifica esta dor. Mas, na maioria dos pacientes observados, foi identificado que ela desdobrou-se em muito sofrimento causando outras dores: emocionais, morais, psíquicas etc.

A ênfase deste trabalho foi apresentar a principal fundamentação do existencialismo sartreano que afirma, com racionalidade reflexiva, que a discussão sobre a vida não é o problema da morte do corpo físico mas, sim, o de como viver a vida e tomar decisões com consciência, assumindo as responsabilidades por elas.
O paciente internado, no contato consigo, num momento de fragilidade corporal e psíquica, temia enxergar o que estava dentro de si mesmo com sua consciência.
Para Sartre, é dentro de cada um que se encontra a referência necessária para as escolhas e atitudes diante da vida. Mais ainda, que nenhuma pressão social, moral ou de qualquer ordem é desculpa para que o homem não escolha.

E como conseqüência disto, que ele assuma a responsabilidade de cada escolha e a ação que dela deriva. Toda e qualquer escolha é única e exclusivamente de cada um.
Aqui neste trabalho também ficou claramente demonstrado que as experiências registradas nos processos psicoterápicos, desde situações das mais simples às mais complicadas, possuem na fala um forte instrumento para minorar, refletir e redimensionar todas as dores de cada um dos pacientes atendidos.
Para isso, o psicoterapeuta teve que compreender adequadamente o sentido correto da comunicação com o paciente internado, considerando o contexto, a relação das partes envolvidas e as formas de expressão - verbal ou não-verbal -.
Cabe a ele, psicoterapeuta, estimular o paciente a reconstruir seu Ser-para-si, começando por provocá-lo a, antes de escolher e agir, refletir sobre estas três perguntas e respostas:
Onde estou? Aqui.
Que horas são? Agora.
O que eu sou? Esse momento.

BIBLIOGRAFIA

CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Lexikon, 2007.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A Escuta e a Fala em Psicoterapia. Uma Proposta Fenomenológico-Existencial. São Paulo: Vetor, 2000.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica: fundamentos, método e pesquisa. São Paulo: Pioneira, 1996.

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