22 de mai. de 2010

O Executor do Amor - Irvin D.Yalom

INTERCÂMBIO HUMANO
Cleiton Rezende

Gorda Senhora é o titulo de uma história do livro O Executor do Amor – e outras estórias sobre psicoterapia, do autor e psiquiatra americano Irvin D. Yalom. Os contos apresentados na obra são verídicos mas, que sofreram modificações para preservar a identidade dos pacientes.

Na ocasião em que procurou o atendimento psicológico, Betty, 27 anos, filha única, solteira e que trabalhava como relações públicas em uma instituição varejista, pesava 115 quilos e media, apenas, 1m e 55cm. Betty cresceu em um pequeno rancho no estado americano do Texas e, aos 12 anos de idade ficou órfã de pai. De acordo com o seu relato, desde que tinha 21 anos, salvo breves períodos, ela engordou.

Nas primeiras sessões Yalom percebe a “superficialidade” de Betty ao falar de si própria. Conforme Yalom (1989, p.86), “ela falou todas essas coisas num tom alegre de conversa, como se estivesse falando sobre uma outra pessoa, ou como se ela e eu fossemos estudantes da faculdade trocando histórias no dormitório”. A incapacidade de se relevar e a sua necessidade de “divertir” o terapeuta nos demonstrou a má-fé de Betty.

Sartre (1997) conceituou como má-fé não somente o ser humano pelo qual se revela negatividades no mundo mas, também, o que pode tomar atitudes negativas com relação a si.

Conforme Yalom (1989, p.94),
Betty disse que não sabia como ser de outro jeito: eu estava lhe pedindo para livrar-se de todo o seu repertório social. Revelar-se? Se ela fosse se revelar, o que mostraria? Não havia nada lá dentro. Ela estava vazia. (A palavra vazia iria surgir com freqüência cada vez maior com o prosseguimento da terapia. O “vazio” psicológico é um conceito comum no tratamento das pessoas com transtornos de alimentação).

No existir humano existem dificuldades e o psicoterapeuta existencial busca compreender como as pessoas lidam com as suas atribulações. O foco não é o problema ou a doença e, sim, o ser, ou seja, a vivência da situação. Como a pessoa está lidando com sua existência, como se envolve com sua vida, o que está fazendo com o vivido: o que fala, sente e como o expressa.

A condição sine qua non na psicoterapia existencial é que o cliente assuma a responsabilidade de seus atos e dificuldades, para que, só assim, seja possível modificar a situação.

Outro dado relevante apresentado por Yalom, nos fala sobre o caminho a seguir para trabalhar as questões centrais na psicoterapia. Segundo ele, esse percurso só será aberto quando o paciente começar a desenvolver sintomas com respeito ao relacionamento com o seu psicoterapeuta.

Após algumas sessões, Betty, que havia tido uma breve depressão, apresentou melhoras; estabeleceu uma vida social; começou a participar de um grupo de auto-ajuda e tomou a iniciativa de cuidar de seu corpo. Mas, todo esse movimento levou Betty a ter sintomas físicos (dores de cabeça e nas costas, dificuldades respiratórias), pois, ela associou a sua redução de peso com a perda de peso que o pai tivera em decorrência do câncer. Sendo assim, ela pensou que poderia ficaria propensa a desenvolver a mesma moléstia.

Conforme Yalom (1989, p.97),
esses sentimentos perturbadores compunham em grande parte os problemas de peso de Betty. Não apenas a comida representava a sua única forma de gratificação, não apenas era uma maneira de amenizar seu sentimento de vazio, não apenas a magreza evocava a dor da morte do pai, como ela também sentia, inconscientemente, que perder peso resultaria na sua morte.

Yalom nos relata que Betty, após falar sobre essas questões que a intranqüilizava, obteve avanços significativos no tratamento. Ela ingressou em um programa para pessoas com transtornos da alimentação, submeteu-se a exames físicos e a uma bateria de testes psicológicos. Betty, também, iniciou uma dieta líquida, começou a fazer diversos exercícios físicos e a dançar. Após 3 meses de trabalhos intensos ela perdera quase trinta quilos.

Em relação à palavra, Queiroz (2004, p.2) nos diz que:
a palavra desafia a dor. A palavra habita nosso corpo inteiro, desde o olhar até o silêncio. A palavra mora encarnada em nós. Se falamos onde dói, a palavra alivia nossa ferida. A palavra nos abre as asas para sobrevoar outras distâncias. A palavra, entre tudo, desbrava nossas divisas. Se nos expressamos, nos tornamos mais claros. Se nos escutamos, ganhamos novos pontos de vista para entender o mundo, mesmo tendo que secar as lágrimas. Ao nos manifestarmos, reinventamos nosso destino e recriamos nosso percurso.

Dando continuidade ao processo, Betty seguia com as atividades e reduzindo de peso mas, ela começou a ter experiências que, até então, eram desconhecidas. Ela notou que alguns homens passaram a conversar com ela, sendo que, um deles, a acompanhou até o carro; o seu cabeleireiro lhe ofertou uma massagem capilar sem ônus e, ainda segundo Betty, seu chefe fortuitamente lhe olhava os seios. Mas, apesar de ter fantasias sexuais, Betty jamais tivera qualquer contato físico com um homem. Fruto de uma sociedade que nega a obesidade entre outras características apontadas como “defeitos”, Betty ficou sentenciada à frustração sexual.

Conforme Augras (2004, p.45),
de um ponto de vista existencial cabe acentuar que a atividade sexual não é apenas principio de realização de desejos e descarga de energia, mas essencialmente encontro e comunicação. Da mesma maneira que assumir a integralidade do corpo é conscientizá-lo em seu duplo papel de delimitação e comunicação entre mundo interno e externo, unir-se sexualmente é vivenciar a dupla situação de complementaridade e separação.

Segundo Goffman (1988, p.13) nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.

A partir do conteúdo de cunho sexual foi possível evocar de Betty lembranças nada agradáveis de rejeições e, principalmente, que o seu pai havia desejado ter tido um filho homem ao invés dela.

De acordo com Yalom (1989, p.103),
nós logo estávamos passando sessões inteiras falando a respeito de seu pai. Chegara o momento de desenterrar tudo. Eu a arrastei a reminiscências e a encorajei a expressar tudo o que ela podia lembrar sobre sua enfermidade, sua morte, sua aparência no hospital quando ela o viu pela ultima vez, os detalhes do funeral, as roupas que ela usava, o discurso do ministro, as pessoas que compareceram.

Nesse estágio, a psicoterapia passou a ocorrer três vezes por semana e foi possível explorar com profundidade e intensidade as lembranças de Betty com o seu pai. O imprescindível dentro do tratamento foi à conscientização de Betty ter construído uma imagem do pai dentro dos modelos de sucesso social que, até então, ela conhecia. Destruir essa imagem e construir uma representação do pai como ser humano com defeitos e qualidades independente de sua interferência enquanto filha foi o começo da construção dela por si própria.

Podemos dizer que a psicoterapia fenomenológica existencial reconhece e enfatiza que o ato de conhecer e de se reconhecer, deve ser uma atitude diferente. É dessa forma que a fenomenologia instaura um movimento regressivo que, sucessivamente, faz aparecer as representações sociais e históricas nas explicações e definições que foram dadas às coisas e ao mundo pelo cliente, para que, ele mesmo, compreenda-se no mundo mas, saiba-se diferente deste e nele possa atuar.

Na história intitulada “Gorda Senhora”, Yalom nos revelou que sempre se sentiu repelido por mulheres obesas e que nunca havia tentado descobrir as origens desses deploráveis sentimentos. Os reais motivos foram poucos explorados, mas o supremo desafio da contratransferência e, por essa exata razão, ele se ofereceu, naquele momento e naquele lugar para ser o terapeuta de Betty. Yalom após 25 anos de prática decidiu que era hora de mudar. Era hora de se permitir viver e re-significar a sua relação com mulheres obesas, o que no principio, era uma tarefa inconcebível.

Conforme Yalom (1989, p.83),
para o psicoterapeuta, esse domínio, esse inesgotável currículo de autodesenvolvimento em que ninguém se gradua é conhecido como contratransferência. Enquanto a transferência se refere aos sentimentos que o paciente erroneamente vincula (transfere) ao terapeuta, mas que de fato se originam de relacionamentos anteriores, a contratransferência é o reverso – sentimentos irracionais semelhantes que o terapeuta tem em relação ao paciente.

Mesmo tendo passado os seis primeiros meses olhando poucas vezes para a sua paciente e jamais tê-la tocado, nem mesmo com um aperto de mão, Yalom se permitiu vivenciar esse desafio. Houve um intercâmbio humano que, com certeza, eles jamais se esquecerão. Um intercâmbio que, segundo Yalom, lhe tirou a respiração e que ele detestaria acabar.

Enfim, por motivos profissionais, Betty teve que interromper a psicoterapia e, podemos dizer que os avanços obtidos neste caso foram, em função, da contratransferência.

BIBLIOGRAFIA

AUGRAS, Monique. O Ser da Compreensão – Fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 2004.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1988.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Entretantos. LASTRO: Belo Horizonte, 2004.

SARTE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

YALOM, Irvin. D. O Executor do Amor. Porto Alegre: Artes Médicas Sul Ltda, 1989.

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