20 de mai. de 2010

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si (1)

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si
Cleiton Rezende

INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe analisar e descrever as observações feitas nos pacientes masculinos, internados em uma enfermaria coletiva do Hospital São Bento, em Belo Horizonte, nos anos de 2006 e 2007.

Os conceitos necessários para a compreensão deste trabalho foram escritos e fundamentados recorrendo-se a autores como Sartre (1997), Husserl (1985), Feijoo (2000), Forghieri (1996) entre outros.

Pretende-se identificar, analisando reflexivamente, os sintomas que permitiram, com as ferramentas conceituais da ciência da psicologia fundamentada na teoria de Jean-Paul Sartre, uma intervenção terapêutica da Psicologia Humanista Existencial.

Os pacientes observados e atendidos aguardavam suas respectivas cirurgias ou se recuperavam delas. Muitos deles, inclusive, apresentavam um agravante: novas patologias desenvolvidas dentro do próprio hospital, além, das já diagnosticadas.

As causas mais observadas das internações eram: acidentes automobilísticos ou de moto, atropelamentos, incidentes no trabalho ou em casa, rejeições de próteses ou do próprio membro reimplantado e, de forma particular, a osteomielite.

Conforme Porto (2001), a osteomielite é uma patologia onde os ossos, que são tecidos com um grande fluxo sangüíneo ficam infectados descontroladamente. A osteomielite, na maioria dos casos, espalha-se causando a interrupção desse fluxo e, conseqüentemente, a morte do osso, denominada de necrose óssea. Geralmente o tratamento é feito utilizando antibióticos administrados durante várias semanas antes da intervenção cirúrgica, preparando o organismo para se extrair a articulação infectada e implantar uma artificial. Mesmo assim, em alguns casos, é necessário recorrer a uma nova intervenção cirúrgica, quer para fundir os ossos da articulação, quer para amputar o membro.

A prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial será apresentada como instrumento efetivo e eficaz de diagnóstico e tratamento, que sinaliza para o paciente a necessidade de buscar o seu processo individual e inadiável da construção do seu “Ser-para-si” que, só poderá ser realizada por ele mesmo.

Para isso, este trabalho foi dividido em 4 partes, a saber: a fundamentação teórica, o método aplicado, a reflexão da observação e considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os conceitos do filósofo alemão Edmund Husserl (1985) sobre a não existência de uma “consciência em si”, mas de uma consciência intencional situada na realidade do mundo, forjaram o alicerce da teoria do filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Para Husserl (1985) não existe uma consciência em si, já que a consciência de nenhum ser humano tem o poder de dar realidade ao objeto nem ao mundo real. Ele afirma que a realidade do mundo, tanto a real quanto a abstrata, existe antes da consciência individual e particular de qualquer pessoa, antes da razão desta mesma pessoa.

A consciência, então, está no mundo, faz parte da realidade deste mundo. Por isso, não existe para ele uma consciência em si. Existe única e tão somente a consciência de alguma coisa, a consciência de alguma realidade. Esta é a definição de consciência intencional.

Em 1943, Jean-Paul Sartre publicou seu principal livro de teoria filosófica, intitulado “O ser e o nada”, onde explica de uma forma inovadora o que é e como se comporta o sujeito do conhecimento. Sartre afirma que o sujeito do conhecimento é o ser humano que, ao longo de sua vida, constrói-se a si próprio transformando-se em “Ser-para-si”.

Na teoria sartreana todo homem nasce como “Ser-em-si”, isto é, sem nenhuma consciência de si nem do mundo. Nasce como um nada. Ele é o nada. E, ao longo de sua vida, ele constrói sua consciência – a mesma definição de consciência intencional de Husserl – e, se torna humano somente quando consegue transformar-se em um “Ser-para-si”.

O Ser-para-si em Sartre é aquele homem que percebe sua própria existência, sabe que sabe e compreende que deve, necessariamente, fazer-se humano no contato com o mundo e com os outros seres humanos. Por isso, a constante afirmação na teoria sartreana de que o homem nascido como Ser-em-si, só se torna humano quando consegue construir-se e se transformar em Ser-para-si. Em outras palavras, o homem nasce como um “nada”, como um Ser-em-si e deve buscar, ao longo de toda sua existência, construir-se como Ser-para-si.

O homem apresenta-se como uma escolha a fazer. Antes de qualquer coisa ele é a sua existência no momento presente, e está fora do determinismo natural; o homem não se define previamente a si próprio, mas em função de seu presente individual. Não há uma natureza humana que se lhe anteponha, mas é lhe dada uma existência especifica num dado momento. (SARTRE, 1970, p. 25)

Mas, o ser humano só torna-se Ser-para-si através de suas escolhas conscientes. Este processo particular é mais facilmente observável num estado de vida em que o indivíduo encontra-se enfermo e jogado na enfermaria de um hospital onde desconhece por inteiro, qualquer outro com o qual é obrigado a conviver.

Conforme Cunha (2007), na etimologia, a palavra “doença” vem do latim e significa padecimento (estado resultante de disfunções orgânicas pela perda da propriedade auto-reguladora de um sistema ou organismo de um indivíduo, que lhe permite manter o seu estado de equilíbrio). E a palavra “enfermidade”, também do latim, significa alteração danosa do organismo. O dano patológico seria, então, proporcionalmente maior, podendo ser estrutural ou funcional, ou ainda, os dois ao mesmo tempo.

Neste trabalho serão usadas estas palavras como sendo equivalentes, já que o foco não é a ciência da patologia humana em seu corpo físico.

Dito isso, temos que a enfermidade é para Sartre uma facticidade. Ou seja, a realidade como é dada a ser percebida pelo sujeito sem que ele possa interferir pela vontade.

O importante é saber que o enfermo não está debilitado apenas em seu corpo físico biológico. Mas, concomitantemente, fragilizado em suas funcionabilidades mental e emocional.

A psicologia fundamentada conceitualmente no existencialismo sartreano nos faz, necessariamente, deduzir com raciocínio lógico, que estas fragilidades mental e emocional - conseqüências inevitáveis da patologia do corpo físico - são tão ou mais graves do que a enfermidade física concretamente verificável por exames clínicos e laboratoriais, motivo evidente, que determina a hospitalização de um paciente.

O foco deste trabalho serão as “fragilidades” e os “desequilíbrios” mentais e emocionais resultantes da enfermidade orgânico-biológica, que num primeiro momento, faz com que o paciente hospitalizado chegue muito próximo da inconsciência de sua própria vida, negando a possibilidade da própria cura.

Entretanto, como teoriza Sartre, o homem como Ser-para-si não tem um modelo a seguir. Ele é um ser indeterminado e se faz a si mesmo através de suas escolhas ao longo da vida.

A característica mais original da obra de Sartre é a preocupação de expressar de maneira metódica e sistemática, o processo de construção do Ser-para-si, desenvolvendo, objetivamente, os conceitos de facticidade, absurdo e liberdade. E, como estes conceitos estão ligados aos conceitos de liberdade, escolha, angústia, náusea e situação-limite. Para explicar e demonstrar estes conceitos acima nomeados, Sartre usa o método da redução fenomenológica.

Na teoria sartreana, fundamentalmente, na obra “O Ser e o Nada”, o estado de angústia e náusea é conseqüência inexorável da importância indiscutível e absoluta dada para a responsabilidade de cada indivíduo na construção de si mesmo como ser humano.
Sartre afirma que diante de todo e cada fato de sua vida, o indivíduo tem a liberdade de escolha. Esta liberdade não é opcional, é uma imposição que estará sempre fundamentada nos valores morais e éticos de cada ser humano. É, por isso mesmo, que a máxima da teoria existencialista de Sartre é afirmar que todo homem sempre é livre, “ele está condenado à liberdade”.
As observações e os atendimentos realizados durante os Estágios Supervisionados IV e V vivenciados em 2006 e 2007 na enfermaria coletiva do Hospital São Bento, serão aqui analisadas e baseadas nos conceitos sartreanos mencionados nos parágrafos anteriores e, explicados teoricamente ao longo do texto. Foi possível observar vários pacientes e escolher alguns deles com os quais se pode trabalhar.

Agora, então, é possível analisar e explicar conceitualmente neste trabalho, como foram feitas as intervenções psicológicas aplicadas nos pacientes ortopédicos atendidos.

No existencialismo sartreano, o homem como ser pensante compreende o caráter absurdo da existência, porque compreende racionalmente que a vida é carente de sentido. A realidade - entenda-se o nascer, viver e morrer - para Sartre é desprovida de razão de ser, é absurda. A realidade do mundo reduz-se pura e simplesmente num “estar-aí” gratuito, absurdo e sem sentido.

Contudo, o homem dificilmente consegue conviver com a simples constatação deste absurdo, da constatação de que ele é “coisa” entre as outras coisas. Então, ele sai em busca de algo que lhe permita deixar de ser apenas coisa, elemento, para ser projeto.

Assim é pela própria opção e efetivação da escolha em cada momento de sua vida e, principalmente, nas situações-limite, que a pessoa pode transformar a si mesma em Ser-para-si.

Conforme Rohmann (2000, p. 359), o mundo das coisas (o en-soi, ou ‘em si’), ao contrário, pode ser inerte e contingente, mas também é auto-suficiente e completo, cada objeto contendo sua própria essência. Nossas interações com o mundo exterior – possuir, usar, consumir ou controlá-lo – e nossas relações semelhantes com outras pessoas são tentativas de captar o ‘em si’, descobrir uma essência e se completar. Contudo, o em si pode tornar-se uma influência excessiva; alguém absorto no mundo, evitando responsabilidade pessoal e opções ativas, é como um objeto, inconsciente e impotente, vivendo na má-fé.

Para Sartre (1997), a consciência humana (o pour-soi, ou ‘para si’) é inquieta, ativa e aberta à experiência, mas sem conteúdo inerente. O ser humano procura esforçar-se na busca de projetos que o definam como Ser-para-si. A liberdade é essencialmente humana e, só possui significado na ação, na capacidade do homem impor modificações no mundo real. Assim, por ser livre, o homem é conseqüentemente responsável por tudo o que escolhe e faz.

As intervenções psicológicas aplicadas foram no sentido de mostrar a cada paciente a necessidade indispensável no processo de cura dele próprio; buscar seu caminho, seu processo de construção do Ser-para-si próprio, único e individual.

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