18 de mai. de 2010

Pacientemente: O-Paciente-a-Caminho-do-Para-Si (2)

O MÉTODO APLICADO

O método fenomenológico herdado da teria de Edmund Husserl e utilizado por Sartre é chamado de redução fenomenológica. Neste ponto do trabalho, explica-se de forma objetiva, porém, simplificada, tanto o conceito teórico da redução fenomenológica bem como a forma como ela deve ser aplicada no atendimento psicológico.
Primeiramente, o observador deve procurar compreender a realidade real e concreta em si mesma, para além e para aquém do relativismo das circunstâncias externas aparentes no momento da observação.

Na prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial é feita a observação presencial para identificar e analisar no processo de tratamento, o paciente, para além do prontuário ou, como diria Sartre, para além das “idéias e explicações já existentes” que os outros o rotularam. Em seguida, separar esta realidade real e concreta em si mesma das confusões que se estabeleceram entre ela e suas definições e conceitos.

Nas intervenções presenciais com o paciente é necessário o estímulo direcionado para que ele identifique a realidade / problema que ele precisa transformar, de suas representações históricas. O paciente precisa compreender o contexto geral no qual encontra-se inserido e, também, identificar separadamente qual é seu problema de cunho psicológico essencial e específico que, alimenta e reconstrói repetidamente sua enfermidade físico-corporal.

Nas intervenções realizadas durante os estágios, fonte de observação para este trabalho, o procedimento empregado para averiguar a vivência de cada paciente hospitalizado atendido foi estabelecer o envolvimento existencial e reflexivo.

Desta forma foi possível encontrar meios de utilização do método fenomenológico para a intervenção psicoterapêutica utilizada.

Cada paciente estimulado por este método, lentamente, porém forçosamente, começou a compreender que só ele define e projeta a sua vida - ou nova vida - após o trauma da dilaceração parcial do próprio corpo físico. Aí é que se dá o que deve ser identificado como construção do Ser-para-si.

Conforme Binswanger (citado por Forghieri, 1996), na prática da ciência da psicologia não há o intuito de se “chegar a um esclarecimento filosófico-fenomenológico da estrutura transcendental do ser humano enquanto ”ser-no-mundo”, mas, sim, empreender uma análise existencial ou empírico-fenomenológica de formas concretas de existência”.

Para Forghieri (1996), no envolvimento existencial, o pesquisador precisa iniciar o seu trabalho procurando sair de uma atitude intelectualizada para se soltar ao fluir de sua própria vivência. Após compreender a vivência do cliente, o pesquisador envolvido nela, pode obter um entendimento global pré-reflexivo.

De acordo com Forghieri (1996), (...) o pesquisador procura estabelecer um certo distanciamento da vivência, para refletir sobre essa sua compreensão e tentar captar e enunciar, descritivamente, o seu sentido ou o significado daquela vivência em seu existir. Porém, o distanciamento não chega a ser completo; ele deve sempre manter um elo de ligação com a vivência, a ela voltando a cada instante, para que a enunciação descritiva da mesma seja a mais próxima possível da própria vivência.

Segundo Feijoo (2000), o método fenomenológico preocupa-se em mostrar, e não em demonstrar. Assim, nos leva aos sentidos relevantes, que buscam os caminhos das dificuldades que impedem a construção do Ser-para-si.

Então, a redução fenomenológica conceituada por Husserl e apropriada por Sartre é o método para a ciência da psicologia pesquisar a vivência do cliente e as possibilidades de intervenções psicoterapêuticas especificas. Este método enfatiza que o ato de conhecer e de se reconhecer, deve ser uma atitude diferente.

De acordo com Rohmann (2000, p.162,163), Husserl propunha o que chamava de ‘redução fenomenológica’, que requeria que se pusesse ‘entre parênteses’, ou que se pusesse de lado, todas as suposições convencionais – inclusive a questão da própria existência dos objetos ou das impressões –, para se examinar as experiências da vida de uma perspectiva nova, imparcial.
É dessa forma que a fenomenologia (a intervenção psicológica fenomenológica) instaura um movimento regressivo que, sucessivamente, faz aparecer às representações sociais e históricas nas explicações e definições, que foram dadas às coisas e ao mundo pelo paciente, para que, ele mesmo, compreenda-se no mundo, mas se saiba diferente deste e nele possa atuar. 

REFLEXÃO DA OBSERVAÇÃO

Este trabalho está apresentando o adoecimento e a internação - enfatizando aquela causada pela osteomielite - como uma das mais significativas “situações-limite” na vida do paciente. A conseqüência mais evidente da osteomielite é a necrose óssea, evidenciada na maioria das vezes, que causa a amputação do membro do corpo mais afetado pela doença.

A constatação e a tomada de consciência desta realidade pelo paciente, instala nele o sentimento de falta de sentido diante de sua existência. A princípio, ele não encontra nenhuma explicação racional que possa ajudá-lo a se posicionar diante do fato concreto da doença e suas conseqüências, no caso, a dilaceração de seu próprio corpo físico.

Na prática terapêutica da Psicologia Humanista Existencial, baseada especificamente na teoria de Jean-Paul Sartre, nenhuma informação exterior que construiu certezas na vida do paciente, lhe oferece resposta adequada para que ele se posicione nesta sua nova existência concreta. É a consciência inexorável do absurdo da existência.
Provavelmente, vários pensamentos aleatórios passam pela mente do paciente. Entretanto, nenhum deles lhe oferece a maneira de ser e agir com este corpo modificado, definitivamente, pela doença.

Neste momento, o existencialismo sartreano, identifica o ponto crucial do nascimento da angústia e conseqüentemente da náusea. É a impotência do indivíduo diante do que lhe é posto por esta realidade concreta. É a “facticidade” da existência, o homem lançado entre as coisas e situações que lhe foram impostas e não escolhidas por ele. E a constatação de que sua própria vida não está em seu controle. Sua vida é uma gratuidade porque ele existe. Neste existir, ele passa por problemas sem razão que a justifique.

Conforme Sartre (1997), com a consciência nascente a partir da juventude, o homem entende que a vida é um absurdo, mas não consegue conviver com esta idéia. A constatação do absurdo faz com que o indivíduo antes de cada ação de sua vida cotidiana, seja obrigado a escolher e ir se construindo como Ser-para-si.

As realidades do mundo, iniciando pelo viver, morrer ou se auto exterminar, as limitações físicas, emocionais, culturais, econômicas, as situações limite, são, enfim, a facticidade. A facticidade são estas opções dadas. O homem não escolhe as opções, mas, entre estas opções. Na sociedade atual as escolhas não são mais dicotômicas, não há mais o certo e o errado, o que facilitava as opções. Hoje vivemos numa sociedade plural, onde a diversidade de opções dadas é fato. Por isso, a angústia diante das escolhas é bem maior, assim como a responsabilidade pelas decisões tomadas.

A condição de paciente internado, arrancado da vida social e impotente diante do seu ontem, do seu agora e de seu amanhã, leva o para circunstâncias obscuras da vida. O paciente internado depara consigo mesmo no presente, e isso é, basicamente, sofrimento. Ele experimenta uma inquietação provocada pela tomada de consciência de sua nova condição e da dilaceração de sua existência, que o obriga, necessariamente, a tomar decisões a partir desta sua outra realidade.

O homem nascido como Ser-em-si, num espaço e num tempo determinado, encontra na facticidade da vida, as opções de escolhas que ele deve, necessariamente, fazer para construir-se com Ser-para-si. O Ser-para-si anterior à doença era outro. A facticidade era outra. O indivíduo na fragilidade da situação de paciente de enfermaria num hospital é levado, inexoravelmente, a compreender que a vida é mudança, que nada e ninguém permanecem os mesmos. Sempre existe algo acontecendo e não há um instante sequer na vida de qualquer pessoa igual ao que já foi por ela vivido.

Portanto, a tomada de decisão que orienta o cotidiano de sua vida se dá a cada instante com opções diferentes inerentes à sua vontade. É preciso compreender e refletir a experiência que ele está vivendo naquele dado instante.

Na introdução do livro “O ser e o nada”, Sartre (1997) afirma que a cultura é constitutivamente social e histórica. Ela é o dado concreto sobre o qual cada indivíduo constrói sua hierarquia de valores com o objetivo específico de exercer a liberdade - escolhas entre as opções dadas - e construir seu Ser-para-si. Na mesma obra citada, Sartre afirma que o tempo e o espaço são originais e concretos. Mas, para o indivíduo, tornam-se psíquicos.

(...) a noção de tempo que é fixada na consciência de cada indivíduo apresenta para ele a noção de espaço, o lugar onde as conseqüências de suas escolhas ficarão registradas para o outro. Desta forma, o homem torna-se humano em seu existir histórico, que é a relação consciência/mundo; a comunicação das consciências interna e externa e as relações intersubjetivas. (SARTRE, 1997, p. 208-209)

Este homem reduzido à “categoria” de paciente precisa, então, se reinventar. Esta reinvenção é a construção, agora diferenciada no seu fazer, que irá apresentar um novo Ser-para-si. Aquele que nasce depois da enfermidade e da experiência dolorosamente indizível da internação hospitalar, principalmente numa enfermaria, aonde o novo eu e o outro são desconhecidos, no mais profundo significado de desconhecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho demonstrou, através da teoria de Sartre, que o tempo real é imediato, já que é negado no concreto para ser reconstruído psiquicamente. Nem o tempo real nem o espaço real oferecem ao homem nenhum sentido. Este sentido é constituído na consciência do sujeito para exercer sua liberdade.

Os homens não têm a mesma noção de tempo e espaço. Cada um em função das circunstâncias de sua vida, dá uma dimensão diferente ao seu passado, ao seu presente e ao seu futuro. Cada um encara o seu tempo de forma individualizada. Por isso, alguns têm maior clareza de suas idéias no presente.

Foi verificado ainda que, quanto mais fragilizado está o homem, por razões diversas - neste estudo, esta razão foi a enfermidade no paciente internado - mais ele transforma seu passado em presente quando lembra de algum acontecimento, que lhe faz reconhecer seu antigo Ser-para-si.
A lembrança lhe traz as mesmas sensações de acontecimentos vividos. Por isso, para este paciente o passado torna-se vivo no presente. E, da mesma maneira, acontece com sua perspectiva de futuro.

A observação presencial em todos os momentos dos estágios, mostrou com clareza verbalizada ou não pelo paciente, que ele, ao deparar consigo, chocou-se em rota de colisão com o absurdo, a falta de sentido de sua existência.
Tudo isso foi observado nas externalizações dos pacientes. Em suas atitudes que, sem dúvida de interpretação, demonstravam tristeza, depressão, solidão e desamparo.

Ou seja, o paciente internado não conseguia lidar com a idéia do nada. Dito de outra forma, ele não compreendia a gratuidade da vida, já que só percebia a falta de sentido que lhe trazia a inexorabilidade da morte, do fim de seu corpo físico.
Cientificamente a biologia explica que a dor física é registro mental do cérebro. É o cérebro que identifica esta dor. Mas, na maioria dos pacientes observados, foi identificado que ela desdobrou-se em muito sofrimento causando outras dores: emocionais, morais, psíquicas etc.

A ênfase deste trabalho foi apresentar a principal fundamentação do existencialismo sartreano que afirma, com racionalidade reflexiva, que a discussão sobre a vida não é o problema da morte do corpo físico mas, sim, o de como viver a vida e tomar decisões com consciência, assumindo as responsabilidades por elas.
O paciente internado, no contato consigo, num momento de fragilidade corporal e psíquica, temia enxergar o que estava dentro de si mesmo com sua consciência.
Para Sartre, é dentro de cada um que se encontra a referência necessária para as escolhas e atitudes diante da vida. Mais ainda, que nenhuma pressão social, moral ou de qualquer ordem é desculpa para que o homem não escolha.

E como conseqüência disto, que ele assuma a responsabilidade de cada escolha e a ação que dela deriva. Toda e qualquer escolha é única e exclusivamente de cada um.
Aqui neste trabalho também ficou claramente demonstrado que as experiências registradas nos processos psicoterápicos, desde situações das mais simples às mais complicadas, possuem na fala um forte instrumento para minorar, refletir e redimensionar todas as dores de cada um dos pacientes atendidos.
Para isso, o psicoterapeuta teve que compreender adequadamente o sentido correto da comunicação com o paciente internado, considerando o contexto, a relação das partes envolvidas e as formas de expressão - verbal ou não-verbal -.
Cabe a ele, psicoterapeuta, estimular o paciente a reconstruir seu Ser-para-si, começando por provocá-lo a, antes de escolher e agir, refletir sobre estas três perguntas e respostas:
Onde estou? Aqui.
Que horas são? Agora.
O que eu sou? Esse momento.

BIBLIOGRAFIA

CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Lexikon, 2007.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A Escuta e a Fala em Psicoterapia. Uma Proposta Fenomenológico-Existencial. São Paulo: Vetor, 2000.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica: fundamentos, método e pesquisa. São Paulo: Pioneira, 1996.

HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas: Sexta Investigação: Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

PORTO, Celmo Celeno. Semiologia Médica. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2001.

ROHMANN, Chris. O livro das idéias: um dicionário de teorias, conceitos, crenças e pensadores, que formam nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000, p. 359.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. 3. ed. Lisboa: Presença, 1970.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

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