17 de jul. de 2010

Fragmentos de um discurso amoroso

SAUDOSO?

SAUDOSO. Imaginando-se morto, o sujeito amoroso vê a vida do ser amado continuar como se nada tivesse acontecido.

(Werther)
1. Werther surpreende Carlota e uma de suas amigas batendo papo; falam com indiferença de um moribundo: "E contudo [...] se partisses hoje, se te afastasses de sua convivência? [...] Teus amigos acaso sentiriam, quanto sentiriam o vazio que tua perda causaria em suas existências? Por quanto tempo?..."
Não que eu me imagine desaparecendo sem deixar saudades: o necrológio é certo: é que justamente através do próprio luto, que não nego, vejo a vida dos outros continuar, sem mudanças; vejo-os perseverar em suas ocupações, passatempos, problemas, freqüentar os mesmos lugares, os mesmos amigos; nada mudaria no ramerrão de sua existência. Do amor, assunção demencial da Dependência (tenho absoluta necessidade do outro), surge cruelmente a posição adversa: ninguém tem realmente necessidade de mim.

(j.-L.B.)
(Apenas a Mãe pode sentir saudades: estar deprimido, dizem, é carregar a figura da Mãe tal como imagino que irá para sempre sentir saudades de mim: imagem imóvel, morta, oriunda da Nekuia; mas os outros não são a Mãe: a eles pertence o luto, a mim a depressão.)

(Etimologia)
2. O que aumenta o pânico de Werther é que o moribundo (no qual ele se projeta) seja assunto de um bate-papo: Carlota e suas amigas são "umas comadrezinhas" que falam futilmente da morte. Vejo-me assim sendo devorado sem apetite pela conversa dos outros, dissolvido no éter da Fofoca. E a Fofoca continuará sem que eu seja, de há muito, seu objeto: uma energia linguageira, fútil e incansável consumirá até mesmo minha lembrança.

j.-L.B.: conversa
Etimologia: "papear" (em francês: papoter): pappa, mingau, pappare, comer sem apetite, palrar e comer.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

"Os Sofrimentos do Jovem Werther" é o título de uma obra de Goethe.

16 de jul. de 2010

Prometi amá-la fielmente...

" E abertamente entreguei meu  coração à terra séria
e doente, e muitas vezes, na noite  sagrada, prometi
amá-la fielmente até a  morte, sem medo, com a sua
pesada carga de fatalidade, e não desprezar nenhum
de seus enigmas. Dessa forma, liguei-me à fatalidade
por um elo mortal. "

Hölderlin
A morte de Empédocles


15 de jul. de 2010

A revolta nasce do espetáculo da desrazão

O absurdo, visto como regra de vida, é portanto contraditório. Que há de espantoso em que não nos forneça os valores que decidiriam por nós quanto à legitimidade do assassinato? Aliás, não é possível fundamentar uma atitude em uma emoção privilegiada. O sentimento do absurdo é um sentimento entre outros. O fato de ter emprestado suas cores a tantos pensamentos e ações no período entre as duas guerras prova apenas a sua força e a sua legitimidade.
Mas a intensidade de um sentimento não implica que ele seja universal. O erro de toda uma época foi o de enunciar, ou de supor enunciadas, regras gerais de ação, a partir de uma emoção desesperada cujo movimento próprio, na qualidade de emoção, era o de se superar. Os grandes sofrimentos, assim como as grandes alegrias, podem estar no ínicio de um raciocínio. São intercessores. Mas não se saberia como encontrá-los e mantê-los ao longo desses raciocínios. Se, portanto, era legítimo levar em conta a sensibilidade absurda, fazer o diagnóstico de um mal tal como se encontra em si e nos outros, é impossível ver nesta sensibilidade, e no niilismo que ela supõe, mais do que um ponto de partida, uma crítica vivida, o equivalente, no plano da existência, à duvida sistemática. Em seguida, é preciso quebrar os jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si próprio.

Quebrado o espelho, não resta nada que nos possa servir para responder às questões do século. O absurdo, assim como a dúvida metódica, fez tábula rasa. Ele nos deixa sem saída. Mas, como a dúvida, ao desdizer-se, ele pode orientar uma nova busca. Com o raciocínio acontece o mesmo. Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto.
A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta. Privado de qualquer conhecimento, impelido a matar ou a consentir que se mate, só disponho dessa evidência, que é reforçada pelo dilaceramento em que me encontro. A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. Mas transformar é agir, e agir, amanhã, será matar, enquanto ela ainda não sabe se matar é legítimo. Ela engendra justamente as ações cuja legitimação lhe pedimos. É preciso, portanto, que a revolta tire as suas razões de si mesma, já que não consegue tirá-las de mais nada. É preciso que ela consinta em examinar-se para aprender a conduzir-se.

Dois séculos de revolta, metafísica ou histórica, se oferecem justamente à nossa reflexão. Só um historiador poderia pretender expor, com detalhes, as doutrinas e os movimentos que se sucederam nesse período. Deve ser possível, pelo menos, buscar nele o fio da meada. As páginas que se seguem propõem apenas alguns marcos históricos, e uma hipótese não é a única possível; aliás, ela está longe de tudo esclarecer. Mas explica em parte o rumo e, quase inteiramente, os excessos de nosso tempo. A história prodigiosa que aqui se evoca é a história do orgulho europeu.

A revolta, em todo o caso, só podia fornecer-nos as suas razões ao cabo de uma pesquisa sobre as suas atitudes, pretensões e conquistas. Em suas realizações talvez se encontrem a regra de ação que o absurdo não conseguiu nos oferecer, uma indicação pelo menos sobre o direito ou o dever de matar, a esperança, enfim, de uma criação. O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é. A questão é saber se esta recusa não pode levá-lo senão à destruição dos outros e de si próprio, se toda revolta deve acabar em justificação do assassinato universal ou se, pelo contrário, sem pretensão a uma impossível inocência, ela pode descobrir o princípio de uma culpabilidade racional. (CAMUS, 2005, p.20 - 22)

BIBLIOGRAFIA

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

14 de jul. de 2010

Alheios a nós mesmos

Se vivermos a vida alheia ou as verdades da vida alheia ou, até mesmo, as vontades alheias, seremos nada mais do que alheios a nós mesmos. E como poderia alguém alheio a si mesmo ser significante para uma outra pessoa, para uma sociedade, para o mundo?
A filosofia, e nisso entenda-se a atividade contínua de filosofar, é condição sine qua non para a existência humana; existência, esta, a de fato, a de ex - sistir, a de "lançar-se". A atividade filosófica nos trás à tona as mazelas do mundo, as incertezas da eterna dúvida, mas, também, trás-nos a certeza de uma vida autêntica à medida em que é praticada pelo sujeito.

12 de jul. de 2010

História da Filosofia: O Existencialismo

7. - O Existencialismo

Heidegger.

"Ao defrontar-se com o existencialismo, a primeira pergunta que todos se formulam logicamente, é esta: estamos realmente diante de uma filosofia no sentido rigoroso do termo? E como a resposta depende de uma definição, todos se preocupam antes de mais nada com a definição pelo menos descritiva do existencialismo, para examinar-lhe os termos, o sentido e a extensão. Ora, os mestres do existencialismo, a evolução de suas idéias, a natureza dos seus princípios, impõem a seguinte conclusão: o existencialismo tem historicamente, e pode ter especulativamente, numerosas e até as mais variadas definições, porque é um conjunto de idéias em ebulição, de idéias que ainda não amadureceram". Acertadamente foi dito, portanto, que o existencialismo é "uma posição, uma situação, um fundo de cenário, mais do que uma filosofia" (72). O existencialismo tomou, no entanto, uma voga tão extraordinária em nossos dias (73) que não é possível silenciá-lo numa história da filosofia. Podemos dizer que o existencialismo é o grito do homem moderno, do pensador desiludido e amargurado pelas trágicas conseqüências da filosofia imanentista, destruidora do ser e de Deus. Neste fundo de subjetividade o pensador é atormentado pela nostalgia da verdade, da realidade, da existência e de Deus; o existencialismo é precisamente a expressão - como disse Maritain - "do grito da subjetividade para o seu Deus".

Com o idealismo absoluto - que teve no atualismo italiano de Gentile a sua extrema e lógica evolução - o pensamento moderno realizou integralmente o seu desenvolvimento imanentista. O existencialismo contemporâneo - o movimento vasto, profundo e significativo da nossa civilização - representa uma reação e uma crítica ao racionalismo e ao otimismo imanentistas do idealismo absoluto. É uma demolição do racionalismo idealista, enquanto enucleia despreocupadamente todos os elementos negativos, contingentes e irracionais, da experiência (humana), que, "absolutizada" imanentisticamente, tornar-se contraditória. Não é, porém, uma demolição do imanentismo, enquanto o existencialismo - pelo menos em suas posições mais significativas - pretende manter-se nos limites da experiência. E, portanto, deve logicamente finalizar no irracionalismo e no pessimismo.

Certamente o existencialismo moderno surge e se afirma filosoficamente como crítica ao racionalismo moderno; essa crítica foi acelerada e levada ao seu auge, historicamente, por duas guerras mundiais, que solaparam as utopias humanista-imanentistas de progresso e civilização, inspiradas nas ideologias do século passado. O existencialismo, porém, atinge e exprime elementos cósmicos, aspectos universais do mundo e da vida em sua negatividade, segundo a grande tradição moralista, que se pode considerar aberta com Buda, e que o existencialismo moderno levou a um grau de amadurecimento antes desconhecido.

Como as grandes orientações culturais do pensamento moderno, o existencialismo tem alcance europeu e mundial. Tem, porém, seu centro constitutivo na Alemanha, assim como o idealismo absoluto, de que representa uma crítica. É, portanto, uma crítica ao espírito do pensamento moderno kantiano e hegeliano. Também a França tem um centro difusor de existencialismo, e proporcionou outrossim uma contribuição fundamental ao pensamento moderno como o racionalismo fenomenista, que tem na França o seu fundador (Descartes), e que juntamente com o empirismo fenomenista (inglês), representa um dos constitutivos essenciais da síntese idealista kantiana.

O existencialismo alemão apresenta, fundamentalmente, um caráter imanentista, sobre a linha central do pensamento moderno; e, portanto, apresenta um caráter negativo, irracionalista e pessimista como o demonstra a filosofia de Heidegger, o maior expoente do existencialismo alemão, europeu e mundial. O existencialismo francês, ao contrário, representa, antes, um caráter transcendental, de conformidade com a tradição espiritualista francesa - ainda que a evasão da existência seja, geralmente, operada por motivos exigenciais, postuladores, fideístas, os quais estão fora do campo especulativo.

BIBLIOGRAFIA

PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 12.ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1978. p.484,485.

Imanente. adj. 1) Inerente: intrínseco 2) Permanente: constante, ininterrupto.

11 de jul. de 2010

Mas que importa: Eu Sou Livre.

"O enredo de As moscas se baseia numa lenda grega: Orestes - filho de Agamêmnon, rei de Argos - volta do exílio; seu objetivo é vingar a morte do pai, assassinado 15 anos antes por sua mãe, Clitemnestra, e pelo amante desta, Egisto - que após o crime enviaram-no para o degredo e transformaram sua irmã Electra em escrava".
Sartre utiliza desse conto, para deixar os seus "comentários" sobre a ocupação Nazista na França.

(...)

Orestes: É minha única chance. Electra, não podes me recusar essa chance. Compreenda-me: quero ser um homem de algum lugar, um homem entre homens. Olha: um escravo que passa, cansado e resmungando, e carregando seu pesado fardo, com os joelhos trêmulos e olhando para seus pés, para evitar cair, ele está dentro de sua cidade, como uma folha na folhagem, como a árvore na floresta, Argos está ao redor dele, pesada e quente, plena de si mesma; eu quero ser esse escravo, Electra, quero estender a cidade em volta de mim e me enrolar nela como se fosse um manto. Eu não vou embora. (SARTRE, 2005, p.59)

Orestes: É tua fraqueza que as faz fortes. Reparaste que a mim elas nada ousam dizer? Escuta: um horror sem nome se pôs sobre ti e nos separa. Mas que é que tu viveste que eu não tenha vivido? Os gemidos de minha mãe, acreditas que meus ouvidos cessarão de os ouvir? E seus olhos enormes – dois oceanos agitados – em seu rosto branco feito giz, acreditas que meus olhos deixarão de vê-los? E a angústia que te devora, acreditas que ela cessará de me roer? Mas que importa: eu sou livre. Para além da angústia e das lembranças. Livre. E de acordo comigo mesmo. Não deves odiar a ti mesma, Electra. Dá-me a mão: não te abandonarei nunca. (SARTRE, 2005, p.94)

Orestes: Não sou nem senhor nem escravo, Júpiter. Eu sou minha liberdade! Assim que me criaste eu deixei de te pertencer. (SARTRE, 2005, p.103)

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, Jean-Paul. As Moscas - Teatro. Trad. Caio Liudvik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.