15 de jul. de 2010

A revolta nasce do espetáculo da desrazão

O absurdo, visto como regra de vida, é portanto contraditório. Que há de espantoso em que não nos forneça os valores que decidiriam por nós quanto à legitimidade do assassinato? Aliás, não é possível fundamentar uma atitude em uma emoção privilegiada. O sentimento do absurdo é um sentimento entre outros. O fato de ter emprestado suas cores a tantos pensamentos e ações no período entre as duas guerras prova apenas a sua força e a sua legitimidade.
Mas a intensidade de um sentimento não implica que ele seja universal. O erro de toda uma época foi o de enunciar, ou de supor enunciadas, regras gerais de ação, a partir de uma emoção desesperada cujo movimento próprio, na qualidade de emoção, era o de se superar. Os grandes sofrimentos, assim como as grandes alegrias, podem estar no ínicio de um raciocínio. São intercessores. Mas não se saberia como encontrá-los e mantê-los ao longo desses raciocínios. Se, portanto, era legítimo levar em conta a sensibilidade absurda, fazer o diagnóstico de um mal tal como se encontra em si e nos outros, é impossível ver nesta sensibilidade, e no niilismo que ela supõe, mais do que um ponto de partida, uma crítica vivida, o equivalente, no plano da existência, à duvida sistemática. Em seguida, é preciso quebrar os jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si próprio.

Quebrado o espelho, não resta nada que nos possa servir para responder às questões do século. O absurdo, assim como a dúvida metódica, fez tábula rasa. Ele nos deixa sem saída. Mas, como a dúvida, ao desdizer-se, ele pode orientar uma nova busca. Com o raciocínio acontece o mesmo. Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto.
A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta. Privado de qualquer conhecimento, impelido a matar ou a consentir que se mate, só disponho dessa evidência, que é reforçada pelo dilaceramento em que me encontro. A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. Mas transformar é agir, e agir, amanhã, será matar, enquanto ela ainda não sabe se matar é legítimo. Ela engendra justamente as ações cuja legitimação lhe pedimos. É preciso, portanto, que a revolta tire as suas razões de si mesma, já que não consegue tirá-las de mais nada. É preciso que ela consinta em examinar-se para aprender a conduzir-se.

Dois séculos de revolta, metafísica ou histórica, se oferecem justamente à nossa reflexão. Só um historiador poderia pretender expor, com detalhes, as doutrinas e os movimentos que se sucederam nesse período. Deve ser possível, pelo menos, buscar nele o fio da meada. As páginas que se seguem propõem apenas alguns marcos históricos, e uma hipótese não é a única possível; aliás, ela está longe de tudo esclarecer. Mas explica em parte o rumo e, quase inteiramente, os excessos de nosso tempo. A história prodigiosa que aqui se evoca é a história do orgulho europeu.

A revolta, em todo o caso, só podia fornecer-nos as suas razões ao cabo de uma pesquisa sobre as suas atitudes, pretensões e conquistas. Em suas realizações talvez se encontrem a regra de ação que o absurdo não conseguiu nos oferecer, uma indicação pelo menos sobre o direito ou o dever de matar, a esperança, enfim, de uma criação. O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é. A questão é saber se esta recusa não pode levá-lo senão à destruição dos outros e de si próprio, se toda revolta deve acabar em justificação do assassinato universal ou se, pelo contrário, sem pretensão a uma impossível inocência, ela pode descobrir o princípio de uma culpabilidade racional. (CAMUS, 2005, p.20 - 22)

BIBLIOGRAFIA

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

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