10 de jul. de 2010

O Inferno são os Outros

Entre quatro paredes

A famosa frase "O Inferno são os Outros", aparece na obra literária Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. O conto (drama) se passa no inferno, mas, não o inferno cristão ao qual estamos acostumados, com demônios e outros estereótipos. Os personagens - um homem e duas mulheres - são levados a um salão sem janelas, iluminado o tempo todo, onde, enclausurados, são condenados a uma "vida sem interrupção", o que torna a sobrevivência insuportável...

Alguns fragmentos:

(...)

No espelho, o homem busca a confirmação da imagem que faz de si mesmo, de sua identidade. A ausência de janelas determina a perda do contato com o externo, a necessidade de viver em função não mais do mundo, mas de suas paisagens mentais; a escova de dentes faz parte dos instrumentos de higiene que nos tornam suportáveis a nossos companheiros. (SARTRE, 2006, p.12)

Embora já tenham passado por pequenas crises de desmascaramento, ainda não foi revelada a natureza hedionda de suas ações pretéritas. Estelle, para reverter o processo de desnudamento de seu eu interior, recorre à tentativa de recuperar sua aparência, exigindo de Garcin um espelho: "Um espelho, um espelhinho de bolso, qualquer um?" Mas não restaram tais objetos e ela sofre mais uma perda: "Quando eu não me vejo, preciso me apalpar pra saber se estou existindo mesmo". Ela é todo exterior, dependente da própria imagem, que a livra do naufrágio em sua interioridade. Na expectativa de reter a imagem construída para uso social, ela aceita a oferta de Inês, que se aproxima e deixa que a outra use seus olhos apaixonados como superfície refletora: "Olha dentro de meus olhos: você consegue se ver? (...) Nenhum espelho vai ser mais fiel do que eu." (SARTRE, 2006, p. 14,15)

O olhar do outro, recusando a passividade do espelho que apenas reproduz, descarna a todos. (...) "cada um de nós é o carrasco dos outros dois", diz Inês. (SARTRE, 2006, p.19)

Todos estes olhares que me devoram... (Ele se vira de repente.) E vocês, são apenas duas? Ah, eu pensava que vocês seriam muito mais numerosas. (Ri.) Então, é isto o inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: O inferno são os Outros. (SARTRE, 2006, p.125)

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Trad. Alcione Araújo e Pedro Hussak. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

9 de jul. de 2010

Versos Derramados

Não quero a sorte de um amor tranqüilo,
Não quero a calma de uma morte indolor;
Quero a angústia de uma paixão impossível,
Fogo que aquece a alma de quem ama;
Quero ter a morte como um castigo
Pra fazer da vida um privilégio.

Não quero ser poupado de todo o mal;
Quero sofrer para só então compreender
O verdadeiro sentido da alegria.
Não quero que chorem tristes lágrimas
Ao pesar da minha morte,
Mas que enxuguem as alegrias
No manto quente das boas memórias.

Não quero um poema para ser analisado;
Quero poesia para ser cantada e gritada
E que seja entendida não pelas palavras  que a carregam,
Mas pelo sentimento que lhe esvai.

Não quero um sol que me afugente o medo do frio;
Quero lua em noite fria de neblina
Que me faça a cada hora
Sonhar com a chegada do calor.

Não quero derramar lágrima
Pra, na dor, compreender, de todo, o poeta e sua vida;
Quero derramar versos
Pra, na poesia, compreender toda a vida e sua dor.


CECÍLIO, André Felipe Souza. Conversa com Versos. Belo Horizonte: pH², 2010. p.59.



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8 de jul. de 2010

Sartre: O Nada

O Nada

Chegamos agora ao ponto principal: como entender a fissura interna (a distância a si) da consciência? Afinal, não há qualquer "separação" no espaço e no tempo entre a consciência e si mesma. Ou seja, a separação íntima que existe no miolo da consciência não é "distância física". E a consciência também não sofre solução de continuidade temporal, ainda que o curso do pensamento se rompa a todo instante e mude de um estado para outro. Então, resta uma hipótese: nada separa a consciência de si mesma, nada separa um estado de consciência do estado seguinte. Ser consciente de alguma coisa é colocar-se "à distância" da coisa de uma maneira especial: uma distância feita de nada.

Logo, o que caracteriza a consciência é esse Nada que a distancia do Ser. A lei suprema do Para-si é estar separado de si e do mundo por um Nada. Convém, no entanto, sublinhar que esse Nada não pode ser compreendido como algo que é, tal qual o Ser: o Nada não é, não existe positivamente. Contaminado pelo Nada, o Para-si apresenta-se, ao contrário do Em-si, como plena negatividade. O Para-si é o Nada que invade o Ser e provoca a abertura no seu miolo. "O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo".

No entanto, o Ser é uma categoria geral que abrange todos os existentes, inclusive a consciência, e estar fora da existência é simplesmente não existir de maneira alguma. Desse modo, como devemos entender que haja dois modos distintos do Ser, o Em-si e o Para-si? Que espécie de relação pode haver entre eles? Existem de fato dois modos distintos do Ser e não uma identidade absoluta entre eles: não se pode reunir as noções de Em-si e Para-si em um gênero comum. Há, na verdade, um conjunto desintegrado. Entre o Em-si e o Para-si ocorre, sim, uma reunião, um trânsito de um a outro - mas é um trânsito que jamais se opera completamente. Sartre fala em "curto-circuito". O Em-si e o Para-si estão unidos em uma conexão que é feita pelo Para-si, já que este é por natureza uma "relação com o Em-si".

Mas devemos abandonar a idéia de que o Para-Si constitua uma substância própria, autônoma do Em-Si, embora haja esse hiato a cindir o Ser. A única realidade que o Para-Si possui é a de ser uma nadificação do Ser. Sem o Em-Si, o Para-si seria uma abstração, assim como não pode existir cor sem forma, ou som sem intensidade e timbre, ou sombra que não seja "sombra de alguma coisa". Se o Em-Si, em sua plenitude, é bastante e desnecessita do Para-Si, este, ao contrário, está tão indissoluvelmente ligado ao Ser positivo quanto o verso ao reverso de uma moeda. Isso parece claro quando atentamos para o fato de que o Nada segregado pelo Para-si só pode ser concebido como "Nada de alguma coisa positiva" ou "Nada de Ser". Em outras palavras: o Nada só pode surgir em relação ao Ser, implícito no Ser e fundamentado em algo concreto, pressupondo o Ser para negá-lo. Inevitavelmente ele aparece "sobre um fundo de Ser" e em ligação com o Ser, dentro dos limites do Ser e jamais fora deles. Todo Nada é Nada de alguma coisa concreta. Por isso, Sartre diz que o Para-Si é como "um buraco" no Em-Si.

Cont...

BIBLIOGRAFIA


PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade. Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM. 1995, p.39, 40 e 41.

7 de jul. de 2010

Antes e Depois de Sócrates

Aproveito o filme do dia anterior (06/07), para deixar uma oportuna informação sobre o Filósofo, Sócrates.
(...)

Sócrates estava sempre disposto a conversar com qualquer pessoa, mas, acima de tudo, ele prezava a companhia dos adolescentes. Estes descobriam nele exatamente aquilo de que a juventude precisa nesta fase de reação - um homem cuja coragem comprovada eles pudessem respeitar a admirar, e cujo intelecto sutil estava sempre a serviço da paixão dos jovens pela argumentação. Ele nunca silenciava seu questionamento imaturo com o tom superior da experiência adulta; era seu desejo saber tudo o que se passava em suas mentes e incentivá-los positivamente a pensar por si mesmos em todos os assuntos, particularmente quanto ao certo e ao errado. Sócrates sempre afirmava, com manifesta candura, que ele próprio era questionador, que nada sabia e nada tinha a ensinar, mas via toda questão como uma questão em aberto. E, por trás da inteligência cheia de humor, eles sentiam a presença de uma personalidade extraordinária, calma, segura e de posse de uma misteriosa sabedoria. Diante deles estava um homem que descobrira o segredo da vida e conseguira um equilíbrio e uma harmonia de caráter que nada conseguia perturbar. Seu tempo estava sempre à disposição de qualquer um que desejasse descobrir esse segredo - acima de tudo, o jovem cuja necessidade obscura e premente era alcançar a liberdade da idade adulta emancipada.

CORNFORD, Francis Macdonald. Antes e Depois de Sócrates. Tradução: Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.40,41.

Sócrates nasceu em Atenas em 470 ou 469 a.C., na época em que findava a guerra entre os gregos e os persas (Guerras Médicas) e quando a vitória da Grécia marcaria o início da fase áurea da democracia ateniense. Sócrates era filho de um escultor, Sofronisco, e de uma parteira, Fenareta.

(+) em SÓCRATES. Os Pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo, 2004.p.19.

6 de jul. de 2010

Filme: Poder além da vida

Olá.

Primeiro, vou logo dizendo que, quem faz a tradução dos nomes de filmes estrangeiros, às vezes, acho que não conhece o idioma utilizado, aqui no caso, o inglês, tampouco assistiu a obra. O titulo original do filme de Dan Millman é "Way of The Peaceful Warrior".

Enfim, já traduzido, o filme intitulado "Poder além da vida" que, não tem nada de além-vida, além-mar, além-túmulo ou coisa parecida, é uma produção genial e baseada em fatos reais. É sobre um jovem ginasta, Dan Millman, que sofre um acidente de moto, fraturando o fêmur em 17 partes diferentes. Tanto antes quanto depois do acidente, a obra cinematográfica é repleta de observações e metáforas sobre o Ser.
O outro personagem vivido pelo ator Nick Nolte e apelidado por Sócrates, é que irá des-pertar em Dan a tomada de consciência, a reflexão e a ação.

Nos primeiros momentos do filme, Dan após acordar assustado por um pesadelo que tivera, se levanta deixando na cama uma bela acompanhante e sai para caminhar, correr e tomar um pouco de ar. Momentos depois, ele chega a um posto de combustivel aonde há uma loja de conveniência e uma oficina mecânica. Ainda não sabendo que o lugar mais apropriado seria na oficina, para poder "reparar" e fazer alguns ajustes na "máquina", o jovem faz a opção pela loja de conveniência.

Aproveito estas últimas linhas e lhe pergunto:
O que você faz é fruto de uma necessidade ou contingência?



Cenas do Filme: Poder além da vida



Depois de visitar a oficina por duas noites consecutivas, Sócrates pergunta a Dan: Você é feliz? E se você não mais participasse da equipe olímpica, o que faria?
Aproveitando da respostas pouco consistentes, Sócrates dispara: "Você imagina mais do que sabe!"; "Conhecimento não é o mesmo que sabedoria. Sabedoria é agir!"; "É possível viver a vida toda sem estar acordado".

Apesar de sair da oficina nada satisfeito, Dan retorna outras noites. E Sócrates continua: "as pessoas temem o que há por dentro"; "Porque você não consegue dormir?" "Talvez, tarde da noite, quando o barulho diminui e você está deitado na cama, e não há ninguém, só você, talvez você se sinta um pouco assustado. Assustado porque, de repente, tudo parece tão vazio. Diga-me que quer ser alguém que usa a mente e o corpo como a maioria das pessoas nunca teria coragem de usar".


Cenas do Filme: Poder além da vida



Após o acidente e antes de Dan voltar a procurar Sócrates, é constatado nos comportamentos do jovem atleta o isolamento, a negação, a raiva etc. Atitudes e/ou sentimentos geralmente vistos em algumas pessoas em determinadas circunstâncias, antes da aceitação.

A médica e escritora Elisabeth Kübler-Ross narrou em seu livro Sobre a Morte e o Morrer, os cinco estágios vividos pelos pacientes que a eminência da morte lhes causa, que são: negação e isolamento, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. (ROSS-KÜBLER, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002).

No reencontro dos personagens, e para não ficar muito longo este Post, vou citar as últimas observações de Sócrates que creio serem indispensáveis.

Sóc. "O hábito é que é o problema". "Só precisa estar consciente de suas escolhas e ser responsável por seus atos. "Não viver a vida enquanto se está vivo". "Não existe começar ou acabar, apenas, fazer".

E as perguntas, onde estou? Aqui! Que horas são? Agora! O que eu sou? Esse momento!, marcam o grande momento da obra, que Sócrates estimula e provoca em Dan antes de suas ações, ou seja, antes de escolher e agir.


Cena final: Poder além da vida


[Fim]

5 de jul. de 2010

Sobre a Pergunta: O que quer dizer Ilustrar?

Sobre a Pergunta: O que quer dizer Ilustrar?
Moses Mendelssohn
*Apresentação e tradução de Maria Lúcia Cacciola, professora do Departamento de Filosofia da USP.


|| O abuso da ilustração enfraquece o sentimento moral, leva ao relaxamento, ao egoísmo, à irreligião e à anarquia. O abuso da civilização produz a luxúria, a dissimulação, a moleza, a superstição e a escravidão. ||

Moses Mendelssohn, o filósofo judeu da época da Ilustração na Alemanha, esclarece neste escrito o conceito de Aufklärung como um componente de Bildung (cultura) ao lado de Kultur (civilização). Seu objetivo é responder à mesma pergunta que leva Kant a escrever o famoso ensaio de 1783, "Respondendo à pergunta: O que é a Ilustração?". Numa nota a este texto, Kant mostra seu apreço por Mendelssohn, quando afirma que teria sustado sua própria resposta, se tivesse tomado conhecimento, em tempo hábil, da de Mendelssohn. Aliás, é Kant que sugere a coincidência dos textos, ao frisar que aí estaria o principal interesse em manter sua resposta (KANT 1,p.61, A 494). Sem dúvida, uma razão de peso para compará-las... Além disso, ambas se incumbem de conceituar a ilustração em números sucessivos do Mensário Berlinense, publicação da maior importância nos círculos ilustrados alemães. Ambas expressam ainda a mesma preocupação: questionar o caráter perigoso atribuído à ilustração e a necessidade de impor-lhe limites.

Leitor(a), você encontra o texto de Kant sobre o esclarecimento (Aufklärung), aqui no blog, separado por partes e nos respectivos dias: Partes 1 e 2 - 24/05/09 / 3 e 4 - 25/05/09 / 5 e 6 - 16/08/09 / 7 a 10 - 08/05/10.
Nota: Eu recomendo ler o texto de Kant primeiro. Só assim, você poderá entender melhor, o que Mendelssohn disse.

A demarcação filosófica do conceito revela um traço específico do movimento ilustrado na Alemanha, quando nos referimos ao seu ponto de partida mais imediato que é a discussão político-religiosa. Embora a Igreja reformada não seja por certo o alvo mais importante dos ataques dos ilustrados [ pessoas esclarecidas ] alemães, o papel preponderante que exerce no campo político-cultural dá a razão das inúmeras questões de caráter religioso tematizadas nos artigos do Mensário Berlinense. Entre elas, a relação entre os credos e a própria relação entre a Igreja e o Estado. É neste âmbito que um dos artigos traz a sugestão de se abolir o casamento religioso, mantendo-se apenas o civil, junto com a proposta de uma religião popular e de uma Igreja estatal, em suma, da união definitiva entre Igreja e Estado. É na réplica a esta postura, que é lançada a pergunta sobre o teor da Ilustração (HINSKE 3, p.444 e TORRES FILHO 4).

Com kant e Mendelssohn a discussão adquire um cunho propriamente filosófico, pois a ilustração põe-se a refletir sobre si mesma, ao questionar seus pressupostos e implicações. As respostas dos dois filósofos apresentam aí um paralelismo notável. Ambas impõem limites à atividade ilustrada, ao mesmo tempo que a erigem em condição indispensável do convívio social. Kant, por seu lado, incumbe-se desta tarefa, distinguindo entre duas formas de liberdade: a que se refere ao uso público da razão, sem limites no mundo burguês letrado; e a de um uso privado, restrito às imposições do exercício de um cargo ou função. Mendelssohn vale-se não só da distinção entre dois aspectos da cultura, um mais teórico, a ilustração, e outro mais próximo da atividade prática, a civilização, mas também da distinção entre o homem visto como ser humano e como cidadão; para ele, no caso de conflito entre as determinações do ser humano e do cidadão, o que decide, em última instância, é a exigência de preservar a organização social. Em suma, em ambas as respostas está presente a demarcação entre um bom uso do esclarecimento e o seu abuso. Na de Kant, com a palavra de ordem de Frederico II, o "raciocinai, mas obedecei" e, na de Mendelssohn, com o conselho da prudência que manda até mesmo "tolerar o preconceito", em nome da religião e dos costumes.

No entanto, o final do texto de Mendelssohn aponta para uma divergência entre ele e Kant: o progresso histórico de uma nação poderia no seu ápice reverter no seu contrário. Não estaria Mendelssohn apontando para uma concepção da História que Kant, no Conflito das Faculdades, critica e caracteriza como um jogo alternante entre progresso e regresso, entre o bem e o mal, cujo resultado seria uma "ausência de atividade" (Tatlosigkeit)? (KANT 2, p.354, A 138). Ou seja, ao invés de um progresso contínuo e ilimitado, uma circularidade no progresso histórico. Mas o que importa afinal, no que se refere à Ilustração, é manter o equilíbrio entre uma presença indispensável e o seu excesso nocivo.

***

As palavras "ilustração", "civilização" e "cultura" são ainda recém-chegadas na nossa língua. Antes de tudo pertencem apenas à linguagem dos livros. O vulgo quase não as entende. Deveria isto ser uma prova de que também a questão é nova entre nós? Não creio. Dizemos de um certo povo, que ele não tem nenhuma palavra determinada quer para "virtude", quer para "superstição", embora possamos, ao mesmo tempo, atribuir-lhes uma quantidade nada desprezível de ambas.

No entanto, o uso da língua que pareça querer assentar uma diferença entre essas palavras de significado semelhante ainda não teve tempo para fixar suas fronteiras. Cultura, civilização e ilustração são modificações da vida social, efeitos da diligência e dos esforços dos homens para melhorar sua situação social.
Quanto mais a situação social de um povo é posta em harmonia com a destinação do homem, por meio da arte e da diligência, tanto mais cultura tem este povo.

A cultura cinde-se em civilização e ilustração. Aquela parece dirigir-se mais para o domínio prático: à qualidade, fineza e beleza nos artefatos, nas artes e costumes sociais (objetivos); à presteza, aplicação e aptidão, nos primeiros e às inclinações, impulsos e hábitos, nos segundos (subjetivos).

Estes, quanto mais correspondem num povo à destinação do homem, tanto mais civilização lhe é atribuída, do mesmo modo que um pedaço de terra, tanto mais cultivado será, quanto mais for posto pela diligência humana em condições de produzir coisas úteis para o homem. A ilustração, em contrapartida, parece referir-se mais ao domínio teórico: ao conhecimento racional (objetivo) e à prontidão (subjetiva) para as reflexões racionais sobre coisas da vida humana, de acordo com a escala de sua importância e de suas influências na destinação do homem.

Coloco sempre a destinação do homem como medida e alvo de todos os nossos esforços e empenhos, como o ponto para o qual temos que dirigir nosso olhar, quando não queremos nos perder.

Uma língua adquire ilustração por meio das ciências e civilização por meio dos usos sociais, da poesia e da eloqüência. Através daquelas, ela torna-se mais apta para o uso teórico, através destes, para o uso prático. Ambas juntas dão cultura a uma língua.
A civilização, na exterioridade, chama-se polidez. Feliz a nação cuja polidez é um efeito da civilização e da ilustração e cujo brilho exterior e delicadeza interior têm por fundamento a pura autenticidade!
A ilustração relaciona-se com a civilização como a teoria à pratica, como o conhecimento aos costumes, como a crítica à virtuosidade. Vistas por si mesmas permanecem na mais exata conexão (objetivamente), apesar de poderem estar também, muitas vezes, subjetivamente separadas. Pode-se dizer: os nuremberguenses têm mais civilização, os berlinenses mais ilustração; os franceses mais civilização, os ingleses mais ilustração, os chineses muita civilização e pouca ilustração. Os gregos têm ambas, civilização e ilustração. Eram uma nação culta, do mesmo modo que a sua língua é culta. Em geral, é a língua de um povo o melhor indício de sua cultura, tanto da civilização, como da ilustração; tanto no que se refere à extensão, quanto no que se refere ao vigor.

Além do mais, a destinação do homem pode ainda ser dividida em: 1) a destinação do homem como ser humano e 2) a destinação do homem como cidadão. Tendo em vista a civilização, estas considerações coincidem; desde que todas as perfeições práticas só tem valor no que se refere à vida social, assim têm que corresponder tão somente à destinação do homem como membro da sociedade. O homem como ser humano não precisa de civilização, mas sim de ilustração.

Na vida pública, posição e profissão determinam para cada membro direitos e deveres que exigem, proporcionalmente, outras aptidões e habilidades, outras inclinações, impulsos, costumes e hábitos sociais - uma outra civilização e polidez. Quanto mais estes estejam, em todas as categorias, em consonância com suas profissões, quer dizer, com suas respectivas destinações como membros da sociedade, mais civilização tem a nação.

Mas exigem também, para cada indivíduo, de acordo com a sua posição e profissão, outros conhecimentos teóricos e outras aptidões para alcançá-los - um outro grau de ilustração. A ilustração que interessa ao homem como ser humano é geral, sem diferença de posição. A ilustração do homem considerado como cidadão, modifica-se de acordo com a posição e profissão. Mas, mesmo aqui, a destinação do ser humano confere aos seus esforços, uma medida e um alvo.

De acordo com isso, a ilustração de uma nação determina-se: 1) como a quantidade de conhecimento; 2) a importância dele, quer dizer, a relação a sua destinação, a) do ser humano e b) do cidadão; 3) a sua expansão por todas as categorias; 4) conforme sua profissão. Portanto, o grau de ilustração tem que ser determinado de acordo com uma relação composta no mínimo de modo quádruplo, cujos próprios membros são em parte rearranjados como membros de relações mais simples.

A ilustração do ser humano pode entrar em conflito com a ilustração do cidadão. Certas verdades, úteis ao homem como ser humano, podem, algumas vezes, prejudicar ao homem como cidadão. É preciso aqui levar em consideração o seguinte, a saber, a colisão pode surgir entre: 1) determinações essenciais ou 2) determinações contingentes do ser humano com 3) determinações essenciais do cidadão ou 4) com determinações inessenciais e contingentes do cidadão.
Sem as determinações essenciais do ser humano, o homem degrada-se em animal. Sem as inessenciais, deixa de ser uma tão excelente criatura. Sem as determinações essenciais do homem como cidadão, a Constituição não mais existe; sem as inessenciais, deixa de ser a mesma em algumas relações secundárias.

Infeliz é o Estado que é obrigado a admitir que nele as determinações essenciais do ser humano não se harmonizam com as essenciais do cidadão e que a ilustração, indispensável para a humanidade, não pode se expandir por todas as categorias do reino - sem isso, a Constituição está em perigo de ir a pique. Aí a filosofia tem que calar! A necessidade pode até prescrever leis, ou melhor, forjar algemas que são postas na humanidade para dobrá-la e mantê-la na opressão.

Mas, quando as determinações inessenciais do ser humano entram em conflito com as determinações essenciais ou inessenciais do cidadão, é preciso estabelecer regras, para que as exceções se regulem de acordo com elas e os casos de colisão possam ser decididos.

Quando as determinações essenciais do ser humano, por infelicidade, opõem-se às inessenciais, quando não se permite que uma certa verdade útil e embelezadora do ser humano se propague sem demolir, ao mesmo tempo, os princípios da religião e dos costumes que a acompanham, o ilustrado, amante da virtude, deve proceder com cuidado e prudência, tolerando de preferência o preconceito, ao invés de, com ele, expulsar logo a verdade que lhe está tão intimamente ligada. Por certo esta máxima tornou-se, desde há muito, uma arma protetora da hipocrisia e temos que lhe agradecer tantos séculos de barbárie e superstição. Sempre que se quis agarrar o criminoso, ele salvou-se no seu santo templo. Apesar disso, quem for amigo do ser humano nestes tempos ilustrados, terá que, a esse respeito, levar em consideração essa máxima. É difícil, porém não impossível, encontrar a linha divisória que separa também aqui, o uso do abuso.

Diz um escritor hebraico, que quanto mais nobre é uma coisa em sua perfeição, mais horrenda ela é na sua decomposição. A medeira podre não é tão feia quanto a flor em decomposição. Esta não é tão medonha quanto o animal putrefato, e este não é tão horrível quanto o homem em decomposição. Também é assim com a civilização e com a ilustração. Tão mais nobre na sua eflorescência, quanto mais repugnante na sua corrupção e perversão.
O abuso da ilustração enfraquece o sentimento moral, leva ao relaxamento, ao egoísmo, à irreligião e à anarquia. O abuso da civilização produz a luxúria, a dissimulação, a moleza, a superstição e a escravidão.
Onde a ilustração e a civilização avançam no mesmo passo consistem mutuamente no melhor meio de preservação contra a corrupção. Pois, os modos como ambas pervertem, opõem-se diretamente.

A cultura de uma nação que se compõe, de acordo com a explicação das palavras, acima dada, de civilização e ilustração, será menos sujeita à corrupção. Uma nação culta não conhece outro perigo, a não ser o excesso de felicidade nacional que, do mesmo modo que a mais plena saúde do corpo humano, já pode ser chamada até mesmo de doença ou de passagem para a doença. Uma nação que chegou por meio da cultura ao mais alto cume de felicidade nacional corre, por isso mesmo, o risco de cair, porque não pode subir mais algo. Todavia, isto já nos afasta bastante da presente questão!



BIBLIOGRAFIA

1) KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung. Werke. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975, vol.9.

2) _________. Der Streit der Fakultäten. Werke. Darmstadt, W.B., 1975, vol.9.

3) HINSKE, Norbert (Org.). Was ist Aufklärung: Beiträge aus der Berlinischen Monasschrift. Darmstadt, W.B., 1981.

4) TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Respondendo à pergunta: Quem é a Ilustração. In Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo, Brasiliense, 1987.

4 de jul. de 2010

Sartre: As Palavras

Filho de Anne-Marie (filha caçula de Louise Guillemin e Charles Schweitzer) e Jean-Baptiste (filho de um médico chamado Sartre), Jean-Paul Sartre nasceu em 1905.
Na obra - As Palavras -, é citado o relacionamento do avô paterno de Sartre, o Dr.Sartre, com a filha de um rico proprietário. A união "muda" deste casal, gerou três filhos do "silêncio". Além de Jean-Baptiste, pai de Sartre, Hélène e Joseph.

(...)

Eu não podia admitir que a gente recebesse o ser de fora, que ele se conservasse por inércia, nem que os movimentos da alma fossem os efeitos dos movimentos anteriores. Nascido de uma expectativa futura, eu saltava, luminoso, total, e cada instante repetia a cerimônia de meu nascimento: eu queria ver nas afecções de meu coração um crepitar de fagulhas. Por que, pois, haveria o passado de me enriquecer? Ele não me fizera; era eu, ao contrário, ressuscitando de minhas cinzas, que arrancava do nada minhas memórias através de uma criação sempre recomeçada.
Eu renascia melhor e utilizava melhor as inertes reservas de minha alma pela simples razão de que a morte, cada vez mais próxima, me iluminava mais vivamente com sua obscura luz. Diziam-me amiúde: o passado nos impele; mas eu estava convencido de que o futuro me puxava; eu teria detestado sentir em mim forças mansas em ação, o lento desabrochar de minhas disposições. Eu introduzira o progresso contínuo dos burgueses em minnha alma e o convertia num motor a explosão; rebaixei o passado perante o presente e este diante do futuro; transformei um evolucionismo tranqüilo em um catastrofismo revolucionário e descontínuo. Fizeram-me notar, há alguns anos, que os personagens de minhas peças e de meus romances tomam suas decisões bruscamente e por crise, que basta um instante, por exemplo, para que o Orestes das Moscas* realize sua conversão. Por minha vida! é que eu os crio à minha imagem; não absolutamente como sou, sem dúvida, mas como pretendi ser.

* As Moscas (Teatro) é outra obra literária de Sartre.

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, Jean-Paul. As Palavras - Memórias. Tradução de J.Guinsburg. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p.157.

É uma obra mais que auto-biográfica.