5 de jul. de 2010

Sobre a Pergunta: O que quer dizer Ilustrar?

Sobre a Pergunta: O que quer dizer Ilustrar?
Moses Mendelssohn
*Apresentação e tradução de Maria Lúcia Cacciola, professora do Departamento de Filosofia da USP.


|| O abuso da ilustração enfraquece o sentimento moral, leva ao relaxamento, ao egoísmo, à irreligião e à anarquia. O abuso da civilização produz a luxúria, a dissimulação, a moleza, a superstição e a escravidão. ||

Moses Mendelssohn, o filósofo judeu da época da Ilustração na Alemanha, esclarece neste escrito o conceito de Aufklärung como um componente de Bildung (cultura) ao lado de Kultur (civilização). Seu objetivo é responder à mesma pergunta que leva Kant a escrever o famoso ensaio de 1783, "Respondendo à pergunta: O que é a Ilustração?". Numa nota a este texto, Kant mostra seu apreço por Mendelssohn, quando afirma que teria sustado sua própria resposta, se tivesse tomado conhecimento, em tempo hábil, da de Mendelssohn. Aliás, é Kant que sugere a coincidência dos textos, ao frisar que aí estaria o principal interesse em manter sua resposta (KANT 1,p.61, A 494). Sem dúvida, uma razão de peso para compará-las... Além disso, ambas se incumbem de conceituar a ilustração em números sucessivos do Mensário Berlinense, publicação da maior importância nos círculos ilustrados alemães. Ambas expressam ainda a mesma preocupação: questionar o caráter perigoso atribuído à ilustração e a necessidade de impor-lhe limites.

Leitor(a), você encontra o texto de Kant sobre o esclarecimento (Aufklärung), aqui no blog, separado por partes e nos respectivos dias: Partes 1 e 2 - 24/05/09 / 3 e 4 - 25/05/09 / 5 e 6 - 16/08/09 / 7 a 10 - 08/05/10.
Nota: Eu recomendo ler o texto de Kant primeiro. Só assim, você poderá entender melhor, o que Mendelssohn disse.

A demarcação filosófica do conceito revela um traço específico do movimento ilustrado na Alemanha, quando nos referimos ao seu ponto de partida mais imediato que é a discussão político-religiosa. Embora a Igreja reformada não seja por certo o alvo mais importante dos ataques dos ilustrados [ pessoas esclarecidas ] alemães, o papel preponderante que exerce no campo político-cultural dá a razão das inúmeras questões de caráter religioso tematizadas nos artigos do Mensário Berlinense. Entre elas, a relação entre os credos e a própria relação entre a Igreja e o Estado. É neste âmbito que um dos artigos traz a sugestão de se abolir o casamento religioso, mantendo-se apenas o civil, junto com a proposta de uma religião popular e de uma Igreja estatal, em suma, da união definitiva entre Igreja e Estado. É na réplica a esta postura, que é lançada a pergunta sobre o teor da Ilustração (HINSKE 3, p.444 e TORRES FILHO 4).

Com kant e Mendelssohn a discussão adquire um cunho propriamente filosófico, pois a ilustração põe-se a refletir sobre si mesma, ao questionar seus pressupostos e implicações. As respostas dos dois filósofos apresentam aí um paralelismo notável. Ambas impõem limites à atividade ilustrada, ao mesmo tempo que a erigem em condição indispensável do convívio social. Kant, por seu lado, incumbe-se desta tarefa, distinguindo entre duas formas de liberdade: a que se refere ao uso público da razão, sem limites no mundo burguês letrado; e a de um uso privado, restrito às imposições do exercício de um cargo ou função. Mendelssohn vale-se não só da distinção entre dois aspectos da cultura, um mais teórico, a ilustração, e outro mais próximo da atividade prática, a civilização, mas também da distinção entre o homem visto como ser humano e como cidadão; para ele, no caso de conflito entre as determinações do ser humano e do cidadão, o que decide, em última instância, é a exigência de preservar a organização social. Em suma, em ambas as respostas está presente a demarcação entre um bom uso do esclarecimento e o seu abuso. Na de Kant, com a palavra de ordem de Frederico II, o "raciocinai, mas obedecei" e, na de Mendelssohn, com o conselho da prudência que manda até mesmo "tolerar o preconceito", em nome da religião e dos costumes.

No entanto, o final do texto de Mendelssohn aponta para uma divergência entre ele e Kant: o progresso histórico de uma nação poderia no seu ápice reverter no seu contrário. Não estaria Mendelssohn apontando para uma concepção da História que Kant, no Conflito das Faculdades, critica e caracteriza como um jogo alternante entre progresso e regresso, entre o bem e o mal, cujo resultado seria uma "ausência de atividade" (Tatlosigkeit)? (KANT 2, p.354, A 138). Ou seja, ao invés de um progresso contínuo e ilimitado, uma circularidade no progresso histórico. Mas o que importa afinal, no que se refere à Ilustração, é manter o equilíbrio entre uma presença indispensável e o seu excesso nocivo.

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As palavras "ilustração", "civilização" e "cultura" são ainda recém-chegadas na nossa língua. Antes de tudo pertencem apenas à linguagem dos livros. O vulgo quase não as entende. Deveria isto ser uma prova de que também a questão é nova entre nós? Não creio. Dizemos de um certo povo, que ele não tem nenhuma palavra determinada quer para "virtude", quer para "superstição", embora possamos, ao mesmo tempo, atribuir-lhes uma quantidade nada desprezível de ambas.

No entanto, o uso da língua que pareça querer assentar uma diferença entre essas palavras de significado semelhante ainda não teve tempo para fixar suas fronteiras. Cultura, civilização e ilustração são modificações da vida social, efeitos da diligência e dos esforços dos homens para melhorar sua situação social.
Quanto mais a situação social de um povo é posta em harmonia com a destinação do homem, por meio da arte e da diligência, tanto mais cultura tem este povo.

A cultura cinde-se em civilização e ilustração. Aquela parece dirigir-se mais para o domínio prático: à qualidade, fineza e beleza nos artefatos, nas artes e costumes sociais (objetivos); à presteza, aplicação e aptidão, nos primeiros e às inclinações, impulsos e hábitos, nos segundos (subjetivos).

Estes, quanto mais correspondem num povo à destinação do homem, tanto mais civilização lhe é atribuída, do mesmo modo que um pedaço de terra, tanto mais cultivado será, quanto mais for posto pela diligência humana em condições de produzir coisas úteis para o homem. A ilustração, em contrapartida, parece referir-se mais ao domínio teórico: ao conhecimento racional (objetivo) e à prontidão (subjetiva) para as reflexões racionais sobre coisas da vida humana, de acordo com a escala de sua importância e de suas influências na destinação do homem.

Coloco sempre a destinação do homem como medida e alvo de todos os nossos esforços e empenhos, como o ponto para o qual temos que dirigir nosso olhar, quando não queremos nos perder.

Uma língua adquire ilustração por meio das ciências e civilização por meio dos usos sociais, da poesia e da eloqüência. Através daquelas, ela torna-se mais apta para o uso teórico, através destes, para o uso prático. Ambas juntas dão cultura a uma língua.
A civilização, na exterioridade, chama-se polidez. Feliz a nação cuja polidez é um efeito da civilização e da ilustração e cujo brilho exterior e delicadeza interior têm por fundamento a pura autenticidade!
A ilustração relaciona-se com a civilização como a teoria à pratica, como o conhecimento aos costumes, como a crítica à virtuosidade. Vistas por si mesmas permanecem na mais exata conexão (objetivamente), apesar de poderem estar também, muitas vezes, subjetivamente separadas. Pode-se dizer: os nuremberguenses têm mais civilização, os berlinenses mais ilustração; os franceses mais civilização, os ingleses mais ilustração, os chineses muita civilização e pouca ilustração. Os gregos têm ambas, civilização e ilustração. Eram uma nação culta, do mesmo modo que a sua língua é culta. Em geral, é a língua de um povo o melhor indício de sua cultura, tanto da civilização, como da ilustração; tanto no que se refere à extensão, quanto no que se refere ao vigor.

Além do mais, a destinação do homem pode ainda ser dividida em: 1) a destinação do homem como ser humano e 2) a destinação do homem como cidadão. Tendo em vista a civilização, estas considerações coincidem; desde que todas as perfeições práticas só tem valor no que se refere à vida social, assim têm que corresponder tão somente à destinação do homem como membro da sociedade. O homem como ser humano não precisa de civilização, mas sim de ilustração.

Na vida pública, posição e profissão determinam para cada membro direitos e deveres que exigem, proporcionalmente, outras aptidões e habilidades, outras inclinações, impulsos, costumes e hábitos sociais - uma outra civilização e polidez. Quanto mais estes estejam, em todas as categorias, em consonância com suas profissões, quer dizer, com suas respectivas destinações como membros da sociedade, mais civilização tem a nação.

Mas exigem também, para cada indivíduo, de acordo com a sua posição e profissão, outros conhecimentos teóricos e outras aptidões para alcançá-los - um outro grau de ilustração. A ilustração que interessa ao homem como ser humano é geral, sem diferença de posição. A ilustração do homem considerado como cidadão, modifica-se de acordo com a posição e profissão. Mas, mesmo aqui, a destinação do ser humano confere aos seus esforços, uma medida e um alvo.

De acordo com isso, a ilustração de uma nação determina-se: 1) como a quantidade de conhecimento; 2) a importância dele, quer dizer, a relação a sua destinação, a) do ser humano e b) do cidadão; 3) a sua expansão por todas as categorias; 4) conforme sua profissão. Portanto, o grau de ilustração tem que ser determinado de acordo com uma relação composta no mínimo de modo quádruplo, cujos próprios membros são em parte rearranjados como membros de relações mais simples.

A ilustração do ser humano pode entrar em conflito com a ilustração do cidadão. Certas verdades, úteis ao homem como ser humano, podem, algumas vezes, prejudicar ao homem como cidadão. É preciso aqui levar em consideração o seguinte, a saber, a colisão pode surgir entre: 1) determinações essenciais ou 2) determinações contingentes do ser humano com 3) determinações essenciais do cidadão ou 4) com determinações inessenciais e contingentes do cidadão.
Sem as determinações essenciais do ser humano, o homem degrada-se em animal. Sem as inessenciais, deixa de ser uma tão excelente criatura. Sem as determinações essenciais do homem como cidadão, a Constituição não mais existe; sem as inessenciais, deixa de ser a mesma em algumas relações secundárias.

Infeliz é o Estado que é obrigado a admitir que nele as determinações essenciais do ser humano não se harmonizam com as essenciais do cidadão e que a ilustração, indispensável para a humanidade, não pode se expandir por todas as categorias do reino - sem isso, a Constituição está em perigo de ir a pique. Aí a filosofia tem que calar! A necessidade pode até prescrever leis, ou melhor, forjar algemas que são postas na humanidade para dobrá-la e mantê-la na opressão.

Mas, quando as determinações inessenciais do ser humano entram em conflito com as determinações essenciais ou inessenciais do cidadão, é preciso estabelecer regras, para que as exceções se regulem de acordo com elas e os casos de colisão possam ser decididos.

Quando as determinações essenciais do ser humano, por infelicidade, opõem-se às inessenciais, quando não se permite que uma certa verdade útil e embelezadora do ser humano se propague sem demolir, ao mesmo tempo, os princípios da religião e dos costumes que a acompanham, o ilustrado, amante da virtude, deve proceder com cuidado e prudência, tolerando de preferência o preconceito, ao invés de, com ele, expulsar logo a verdade que lhe está tão intimamente ligada. Por certo esta máxima tornou-se, desde há muito, uma arma protetora da hipocrisia e temos que lhe agradecer tantos séculos de barbárie e superstição. Sempre que se quis agarrar o criminoso, ele salvou-se no seu santo templo. Apesar disso, quem for amigo do ser humano nestes tempos ilustrados, terá que, a esse respeito, levar em consideração essa máxima. É difícil, porém não impossível, encontrar a linha divisória que separa também aqui, o uso do abuso.

Diz um escritor hebraico, que quanto mais nobre é uma coisa em sua perfeição, mais horrenda ela é na sua decomposição. A medeira podre não é tão feia quanto a flor em decomposição. Esta não é tão medonha quanto o animal putrefato, e este não é tão horrível quanto o homem em decomposição. Também é assim com a civilização e com a ilustração. Tão mais nobre na sua eflorescência, quanto mais repugnante na sua corrupção e perversão.
O abuso da ilustração enfraquece o sentimento moral, leva ao relaxamento, ao egoísmo, à irreligião e à anarquia. O abuso da civilização produz a luxúria, a dissimulação, a moleza, a superstição e a escravidão.
Onde a ilustração e a civilização avançam no mesmo passo consistem mutuamente no melhor meio de preservação contra a corrupção. Pois, os modos como ambas pervertem, opõem-se diretamente.

A cultura de uma nação que se compõe, de acordo com a explicação das palavras, acima dada, de civilização e ilustração, será menos sujeita à corrupção. Uma nação culta não conhece outro perigo, a não ser o excesso de felicidade nacional que, do mesmo modo que a mais plena saúde do corpo humano, já pode ser chamada até mesmo de doença ou de passagem para a doença. Uma nação que chegou por meio da cultura ao mais alto cume de felicidade nacional corre, por isso mesmo, o risco de cair, porque não pode subir mais algo. Todavia, isto já nos afasta bastante da presente questão!



BIBLIOGRAFIA

1) KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung. Werke. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975, vol.9.

2) _________. Der Streit der Fakultäten. Werke. Darmstadt, W.B., 1975, vol.9.

3) HINSKE, Norbert (Org.). Was ist Aufklärung: Beiträge aus der Berlinischen Monasschrift. Darmstadt, W.B., 1981.

4) TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Respondendo à pergunta: Quem é a Ilustração. In Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo, Brasiliense, 1987.

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