4 de out. de 2009

O Medo de Errar

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo – Crônicas. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 1999.

O MEDO DE ERRAR
13 de Setembro de 1969

A um suíço inteligente perguntamos uma vez por que não havia propriamente pensamento filosófico na Suíça. Como resposta, nosso interlocutor lembrou-me que seu país tem três raças, quatro línguas. De onde podemos concluir, três ou quatro pensamentos. Que esta nação que funciona, digamos, quase perfeitamente, precisa constantemente procurar um equilíbrio, fazer uma suma de idéias, reduzi-las àquela que, sem ferir completamente as outras, satisfaça mais ou menos a todos. Assim, quem pensa espera de antemão uma vitória apenas média. As idéias de cada um se encontram e param no seu ponto de contato com as outras. Ora, o pensamento filosófico é por excelência aquele que vai até o seu próprio extremo. Não pode admitir transigências, senão a posteriori. Nenhuma obra filosófica poderia ser construída tendo como um de seus princípios tácitos a necessidade de se chegar somente até certo ponto.

Este é mais um dos aspectos da neutralidade suíça. Esta não funciona apenas em relação a fins exteriores. É um princípio que dirige a paz interna, exatamente tendo em vista a mistura de raças. É um princípio, mais do que de paz, de apaziguamento. Ser neutro não é solução a determinado caso, ser neutro tornou-se, com o tempo, uma atitude e uma previdência.
Esse admirável país encontrou sua fórmula própria de organização social e política. Mas que pouco a pouco estendeu-se a uma fórmula de vida.
O amálgama de tendências e necessidades formou uma cultura e entranhou-se de tal forma nos indivíduos que, se esta nação não fosse formada de vários grupos raciais, se poderia cair na facilidade de falar em caráter racial.
Pode-se falar no entanto em caracteres nacionais – e um dos mais evidentes é o da atitude mental de precaução.

A impressão que se tem de um suíço é a de um homem que vive em segurança e, mais do que isso, que sofre da ânsia de segurança. A propósito disso poder-se-iam lembrar várias causas gerais, como situação geográfica, dificuldade de produção agrária etc.
Essa atitude de previdência encontra, a cada momento, motivo de se concretizar. E se estende até onde já seria desejável que se interrompesse.
Assim, por exemplo, é comum, pelo menos em Berna , ver-se metade de uma platéia retirar-se antes de começarem as músicas modernas. Às vezes antes de peças que serão executadas pela primeira vez na Suíça.

No entanto o povo suíço gosta realmente de música, sinceramente, sem nenhum esnobismo. O fato é motivado particularmente pelo horror que o povo tem pela música moderna ou pela literatura moderna ou pela pintura moderna: a palavra moderna soa um pouco como escândalo, como aventura ainda suspeita. Porém, mais amplamente e mais profundamente, esse fato vem de que o suíço teme errar na sua admiração.
Os suplementos literários de jornais suíços descobrirão cartas sepultas de Vigny – adivinharão pensamentos ocultos de Madame de Staël – atacarão, mesmo com certa ferocidade cômoda, o várias vezes falecido Renan – desculparão Victor Hugo nas suas brigas com amigos – e se aparece oportunidade de comemoração de centenários as páginas se cobrirão de comentários a respeito; há mais centenários na terra do que um homem atual pode prever.

Não é apenas por gosto e por respeito à tradição. É medo de se arriscar. Um escritor vivo é risco constante. É homem que pode amanhã injustificar a admiração que se teve por sua obra com um mau discurso, com um livro mais fraco.
O povo suíço nada recebeu gratuitamente. Tudo nessa terra tem marca de nobre esforço, de conquista paciente. E não foi pouco o que eles conseguiram – tornar-se um símbolo de paz.

Esse estado de alta civilização – onde a expressão homem civil tem realmente um sentido e uma força – eles o manterão a todo custo, com austera previdência, com dura disciplina mental, com a precaução contra o erro.

O que não impede que tanta gente, em silêncio, se jogue da ponte de Kirchenfeld, sem que os jornais sequer noticiem para que outros não o repitam. De algum modo há de se pagar a segurança, a paz, o medo de errar.

* Texto trabalhado em sessões de psicoterapia.

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