28 de jun. de 2010

Sartre - O PARA-SI

O PARA-SI

O ser

a) A pergunta fundamental.

Em Ser e Tempo, Heidegger retomou a questão do sentido do Ser, que, segundo ele, caiu no esquecimento dos filósofos desde Platão e permaneceu, ao longo dos séculos, na mais completa obscuridade. A inteligibilidade do Ser, disse Heidegger, reveste-se de importância fundamental: nenhuma especulação filosófica será válida se não soubermos preliminarmente do que é que estamos tratando. No entanto, apesar de aparentemente compreendido por todos e dado por evidente, o Ser é algo que está sempre velado. Ninguém ignora o sentido de frases como “o céu é azul” ou “eu sou um homem”. Mas, se nos aprofundarmos, já não saberemos mais explicar o que é esse Ser que está em toda parte. Segundo Pascal (1623-1662), já ao tentarmos uma definição do Ser caímos em um círculo vicioso, “o Ser é...”. Pois, assim, aquilo que queremos definir já se acha contido na sua própria definição.

Por mais longe que possamos chegar nessa pesquisa, como foi o caso do próprio Heidegger, vamos deparar com algo que foge ao nosso saber e do qual só possuímos um entendimento fugidiço. Por isso, Sartre não aborda o Ser do modo como fez Heidegger, procurando desvendá-lo, e sim se restringe a encarar o Ser por seus infinitos modos de manifestação – ou seja, o Ser já qualificado, assim como nos aparece, em forma de coisas (“entes”, na denominação de Heidegger). Portanto, se a filosofia de Heidegger pretende analisar a existência humana que conhecemos apenas como via de acesso a um nível transcendental (a descoberta do mistério do Ser), a de Sartre mantém-se assentada no mundo concreto e na vida cotidiana do homem.

b) “Tudo está em ato”

Sartre, todavia, aceita algumas premissas de Heidegger no tocante ao Ser. Ambos se descartam, em primeiro lugar, da secular ilusão introduzida por Aristóteles (384-322 a.C.) – e retomada por Kant (1724-1804) – de que o Ser é uma substância oculta por trás das coisas que nos aparecem. Isso apenas põe em dúvida a nossa capacidade de conhecer verdadeiramente as coisas, já que, segundo essa teoria, só podemos alcançar o invólucro, o disfarce exterior das coisas, que encobre as “coisas em si”. Eliminando o dualismo aristotélico de “ato-e-potência” e o dualismo kantiano de “fenômeno-e-nômeno”, Sartre segue o principio de Husserl: “Tudo está em ato”. Ou seja: a aparência (fenômeno) das coisas já encerra toda a sua essência (nômeno). Os fenômenos que nos aparecem (os “entes” de Heidegger) são totalmente reveladores de si mesmos e nada contêm de oculto: são exatamente aquilo que mostram ser, e não devemos supor que existem potências ocultas ou essências armazenadas por detrás das aparências que podemos observar. Todos os fenômenos através dos quais se manifesta o Ser (sejam os objetos, as emoções, os conflitos humanos etc) estão em ato e só existem dando provas dessa existência em ato.

Mas isso não quer dizer que o fenômeno por nós percebido se confunda integralmente com esse Ser propriamente dito: o Ser de uma aparição é algo que escapa à simples aparição, não se reduz ao conhecimento que temos de um fenômeno. Não que se trate de uma essência oculta por trás do fenômeno: o que ocorre é que o Ser de um fenômeno não se esgota na aparição ou na série de aparições desse fenômeno. O Ser existe mesmo quando não nos aparece. Escapa às leis da aparição. Por exemplo: o fenômeno-livro que tenho frente aos meus olhos revela todo o Ser desse livro, mas o Ser desse livro não se suprime quando o fenômeno-livro não me aparece. Seria mesmo absurdo supor que meu amigo Pedro deixasse de existir quando não o vejo.**

C) A contingência

Colocado nesses termos, podemos concluir que o Ser é regido pelo princípio de identidade: ele é somente aquilo que é. Como se existisse em repouso, indolentemente, em uma espécie de frouxidão, o Ser nos surge tal qual uma matéria opaca e plena de si mesma, densa e maciça, algo plenamente constituído e sem rachaduras, esgotando-se nesse "não-ser-outra-coisa-senão-si-mesmo". Uno e maciço, o Ser está fechado em si, sendo incapaz de estabelecer qualquer relação consigo mesmo. Devemos compreendê-lo como pura positividade: O Ser é o que é, nada além disso.

O Ser aparece como algo que está aí, sem que saibamos por que, algo cujo existir só podemos entender como absoluta contingência. Contingente no sentido de não necessário: nada parece impor ou justificar o aparecimento do Ser, nenhum sinal nos indica qualquer razão para que o Ser exista e seja o que é, e não de outra maneira. Contingente no sentido de que este Ser - o mundo que existe, e não outro - poderia ser diferente. A existência das coisas acontece desse modo, como poderia acontecer de outro, ou mesmo não acontecer. Não temos onde encontrar uma "causa primeira" para o Ser. Outro ser (digamos, Deus) não poderia tê-lo criado, porque se todo Ser devesse ser criado por outro Ser esse outro Ser deveria igualmente proceder de outro Ser, e assim indefinidamente. Tampou seria concebível que o Ser se criasse a si mesmo, porque, nesse caso, o Ser deveria existir de algum modo antes de se criar, exatamente para criar-se, o que é absurdo. Falta assim ao Ser um impulso original. Como um tecido canceroso que tende a tudo invadir e a tudo ocupar, obsidiante, com um poder de proliferação irreprimível e cego, o Ser sitianos por todos os lados, com o seu existir sem rezão e sem necessidade.

A brusca revelação dessa contingência, da gratuidade e da absurdidade do Ser, produz um sentimento de sufocação que Sartre simbolizou em uma figura literária, a Náusea. Roquentin, o personagem da novela A Náusea (1938), percebe que todas as coisas encaradas com normalidade por simples hábito escoram-se, na verdade, no abstrato mundo dos conceitos e das palavras (essa falsa realidade) para nos dissimular o que de fato são: coisas estranhas, opacas, impenetráveis, ininteligíveis. O que é uma árvore ou uma caneta-tinteiro, o que são as feições de um rosto, por trás dessas designações lingüísticas, se não pura materialidade indeterminada e absurda? Diz  Roquentin: "Ora, nenhum Ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão de ótica, uma aparência enganadora que se possa desnudar. É o absoluto e, por conseguinte, a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esta cidade, este jardim, eu mesmo".

** Sartre contesta assim o idealismo filosófico, segundo o qual o mundo é uma “criação” da nossa mente.

BIBLIOGRAFIA

PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade. Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM. 1995, p.35 a 37.

Capa do DVD

Fundadores do Pensamento no Século XX - Franklin Leopoldo e Silva: Fenomenologia e Existencialismo.
Franklin apresenta de maneira clara os pensamentos de Husserl à Sartre nesta obra. É uma ótima indicação para quem quer compreender o Sujeito do conhecimento de Sartre. Vale a pena!

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