1 de jul. de 2010

A Noite: Figuras da Escuridão

A Noite
Figuras da Escuridão

Quando termina o dia e as trevas descem sobre as cidades e os campos, vêm à tona todos os tipos de criaturas malignas, reais ou imaginárias.

Por Jean Verdon

Os homens da Idade Média sofriam de insônia. Os ansiosos acordavam várias vezes durante a noite. E tinham pesadelos. A semelhança aparente entre o sono e a morte perturbava. Especialmente porque, nos séculos XIV e XV, a noite podia ser fonte de perigos bem reais, provenientes da guerra.
Junto com esses perigos, estavam os medos criados pelas histórias de seres diabólicos, almas de outro mundo, lobisomens, feiticeiras e até aqueles presentes nos que sofriam de sonambulismo. Sem dúvida, um caldeirão de temores criados pela imaginação, que ganhavam ainda maior destaque e efeitos quando reforçados pela escuridão real que a noite da Idade Média proporcionava.

Na Idade Média, a noite era identificada ao Mal: se Deus é luz, as trevas só podem ser o domínio do Maligno. Numa epístola que incitava os efésios a vestir a armadura de Deus, Paulo dizia a eles que deviam lutar "contra os Principados, contra as Forças, contra os Regentes deste mundo de "trevas". Trevas que reinavam, então, nas ruas das cidades, já que, salvo raras execeções, elas não eram iluminadas.
Os medos noturnos também eram avivados por outros elementos. A visão dos astros apresentava ao homem um espaço do qual ele não tinha consciência durante o dia. E o situava em um universo cuja inquietante infinitude podia pressentir então com mais nitidez. Por isso, não surpreende que os homens experimentassem terrores noturnos: terrores imaginários, mas terrores também decorrentes dos perigos próprios à epoca.

Diabos, espíritos e feiticeiras

Diabos, espíritos e feiticeiras tinham ligações estreitas com a noite. Heinrich Buschmann, morto havia 40 anos, teria aparecido diversas vezes a seu neto Arndt, em 1437 e 1438. Como este lhe perguntasse por que vinha à noite, em vez de vir durante o dia, Heinrich teria respondido: "Enquanto eu não puder ir até Deus, permanecerei na noite. É por isso que apareço com mais freqüência  na escuridão do que durante o dia claro".
Em 1214, Gervase de Tilbury afirmou em O livro das maravilhas: "Eu conheço mulheres de idade avançada, residentes nas cercanias, que me disseram ter visto, à noite, seus jovens empregados e empregadas numa nudez indecente. Também contaram o que faziam na escuridão, bem longe dali. Por vezes, curavam nossas crianças de flagelos invisíveis. E afirmaram que, enquanto seus maridos dormiam, elas sobrevoavam o mar e corríam o mundo. Se alguém, durante o percurso, pronunciasse o nome de Cristo, caía imediatamente, onde quer que fosse e sob qualquer risco. Nós sabemos que algumas mulheres, vistas à noite sob a forma de gatos, e feridas por pessoas que as espreitavam, apresentaram, no dia seguinte, ferimentos e membros mutilados".

Robert de Boron
A história de Merlin, séc.XIII


O maligno aparece freqüêntemente em obras literárias ou narrativas da Idade Média. Ele é o tentador por excelência. E, numa sociedade na qual a imaginação tinha um papel importante, não surpreende que assumisse formas assustadoras para os que o temiam. Justamente em função desse temor, pensavam tanto nele que o viam aparecer até mesmo em circunstâncias banais.
Se, no início da Idade Média, Satã tinha um papel discreto, os séculos X e XI foram um período de demonização. Porém, ao mesmo tempo que assustava, o Diabo também seduzia -- leis-se divertia. No século XIV, ao contrário, num clima mais pesado, o diabólico cresceu. O Inferno e seu senhor, Lúcifer, eram descritos cada vez com maior precisão. As visões das penas sofridas pelos danados devem ter assombrado, por mais de um noite, os que sofriam de insônia.
Dentre os agentes de Satã, figuravam em especial os íncubos, demônios lascivos que tinham fama de violar as mulheres enquanto elas dormiam (Veja imagem). E havia também as diabas, chamadas súcubos, que se uniam aos homens à noite. Em uma famosa obra de demonologia, O martelo das feiticeiras, foram postas em cena mulheres que representavam o mal, distinguindo-se as que se submetiam aos íncubos de espontânea vontade daquelas que interagiam com eles sem querer. E, finalmente, das inocentes, que suportavam o assédio desses demônios.

A lua e os lobisomens

Gervase de Tilbury escreveu: "Eu sei que todos os dias acontece algo nestas paragens, pois este é o destino da raça humana. Alguns homens se transformam em lobos, dependendo da fase da lua. Na verdade, sabemos que, em Auvergne, o nobre Pons de Capitol deserdou Raimbaud de Pouget, um cavaleiro bravo e valente. É que este passou a errar e vagabundear pela região, assombrando caminhos mais escondidos e bosques, solitário como um animal selvagem. Certa noite, sob a influência de um terror excessivo que provocou uma alienação de seu espírito, ele se transformou em lobo. Isso foi um imenso flagelo para a região, a ponto de muitas casas ficarem desertas. As criancinhas, ele as devorava como se fosse um lobo. Os adultos, fazia em pedaços, com mordidas selvagens. Por fim, gravemente ferido por um lenhador, perdeu um pé, cortado a machadada, e recuperou sua forma humana". Durante a noite, dizia-se, as almas das pessoas mortas manifestavam-se algumas vezes de forma física. Enquanto na Alta Idade Média os espíritos eram raros, houve, a partir dos séculos XI e XII, uma mudança. Eles apareciam tanto nos sonhos como durante a vigília, sozinhos ou em bandos intermináveis. Um sermão do século XV fala de um padeiro que tinha morrido e voltava, à noite, para ajudar a mulher e os filhos a fazer o pão. Assustados, estes fugiram, mas o vizinhos quiseram ver o espírito do morto. A abertura da tumba permitiu então que se constatasse que o defunto estava lá, coberto de lama. Apesar de a vala estar cheia, o padeiro reaparecia.
Havia vária maneiras de representar os espíritos dos mortos, algumas vezes como fantasmas. Uma tradução do Decamerão, oferecida a Carlos VI em 1414, tem uma dessas ilustrações. São duas imagens: uma, de dois amigos sentados à mesa, prometendo-se que o primeiro que morresse voltaria para ver o outro. Um deles, que tinha praticado sexo com sua comadre, morrreu logo depois e apareceu ao amigo. Este, acordado, é representado em sua cama. O espírito do morto, semi-escondido, apresenta o corpo esquelético, coberto com um lençol branco. Seus traços correspondem aos de um homem que teria envelhecido muitas décadas em poucos dias.

Naquela época, acreditava-se que as feiticeiras mantinham relações privilegiadas com Satã, ligações que se concretizavam durante o sabá. Até o século XIII, a Igreja não condenava com severidade tais superstições. Mas, pouco a pouco, inquisidores e juízes leigos passaram a reprovar a feitiçaria, sobretudo a partir do século XV. A imagem do feiticeiro - e com maior freqüência a da feiticeira - integrou-se ao imaginário coletivo com características específicas: pacto com o Diabo; encontros durante os sabás; vôos noturnos montadas em animais ou em cabos de vassoura.

Pode acontecer que a angústia que sufoca quem dorme se traduza em atos dos quais a pessoa não tenha consciência. Por exemplo, nos casos de sonambulismo. Em 1388, quando o poeta e cronista Jean Froissart estava na corte de Gaston Phebus, conde de Foix e Béarn, um escudeiro lhe contou a surpreendente história de Pierre de Béarn, irmão bastardo de Gaston. Como Froissart lhe perguntasse por que aquele senhor não era casado, ouviu a resposta que, sim, era casado, mas que sua esposa e seus filhos o tinham deixado porque era sonâmbulo. À noite, ele se levantava, mesmo adormecido, pegava uma espada e lutava no vazio. Se não encontrasse a espada, fazia tamanho escândalo "que todos os diabos do inferno pareciam estar com ele".

Observemos que a Idade Média não era desprovida de meios para lutar contra as dificuldades do sono. Em particular, fazia-se uso de ópio e das solanáceas, como a mandrágora, o meimendro e a beladona.

Risco de Incêndio

Na época da Guerra dos Cem Anos havia perigos bem reais, que podiam, efetivamente, tumultuar as noites dos habitantes. Em 1412, o duque de Orléans tomou a ponte de Saint-Cloud da seguinte maneira. Um amigo responsável pela guarda da ponte, descontente por ter sido substituído, deu um jeito de que não houvesse vigilância noturna. Aproveitando-se da situação, um cavaleiro e 300 homens entraram e atacaram os guardiões e os moradores, que, despreparados para aquilo, acordaram de sobressalto e não puderam resistir.
A noite era temível também porque facilitava os incêndios. Em setembro de 1414 teve início um incêndio noturno no acampamento militar real. O fogo se propagou nos barracões de madeira, e, passando de tenda em tenda, acabou por atingir a parte traseira dos aposentos do rei, que foi para um local seguro. Porém, muitos doentes não puderam fugir e morreram em meio às chamas.

Jean Verdon é autor de La nuit au Moyen Âge (A noite na Idade Média, Perrin, 1993)

BIBLIOGRAFIA

Revista História Viva. Grandes Medos da Idade Média. Ano IV - Nº 38 - Dezembro de 2006 - Duetto Editorial. Páginas, 52 a 55.

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