3 de jul. de 2010

Sartre - A CONSCIÊNCIA

A consciência

a) Distância a si.

Já o fato mesmo de um homem como Roquentin ser capaz de emitir um juízo sobre o Ser demonstra que, de um modo muito especial, ele não é exatamente como o Ser. Há uma diferença de qualidade que separa a sua consciência das coisas. O Ser rege-se pela identidade de si a si, sem relação interna possível. Sendo algo que se auto-ignora, não tem consciência. A consciência, ao contrário, é essa propriedade que o Ser não possui de pensar sobre as coisas, exprimir juízos sobre elas, interrogar a respeito delas e de si mesmo, colocando em questão o seu próprio ser.

Para caracterizar melhor essa propriedade, podemos recorrer a uma metáfora. Tento descobrir a significação de uma pintura aproximando os olhos da superfície da tela. Nesse caso, nada consigo ver. Em seguida, tomo um recuo que me permita abarcar o quadro com o olhar. Da mesma maneira como (em termos de espaço físico) preciso me afastar do objeto a ser percebido exatamente para poder percebê-lo, também a consciência precisa recuar de algum modo diante do objeto visado para ser consciente dele.

É como se a consciência se colocasse a certa distância do mundo das coisas a fim de estar em condições de presenciá-las. Embora uma das determinações fundamentais da consciência seja a de estar no mundo, atrelada ao Ser, a consciência não se identifica literalmente com ele, como se fosse coisa entre coisas. Está, sim, em presença dele, colocada à distância dele. Sartre tirou essa concepção da consciência das conclusões de Heidegger em Ser e Tempo: o homem não está "no meio" do mundo, mas "em presença" dele, "frente" a ele. Heidegger diz que o homem é o "Ser das lonjuras", o único Ser que ex-siste (com o prefixo ex indicando afastamento).

Tudo se passa como se o Ser, perdendo a sua solidez, sofresse uma fissura ou descompressão interna, um desgarramento de si, uma não-coincidência consigo - e, já como consciência viesse a se pôr à distância, em "outro lugar" que não o seu eterno repouso. É o que Sartre denomina "a única aventura possível do Ser". Única porque, ao fazer-se consciência, o Ser perde-se como uno e positivo, a identidade de si a si desagrega-se. Tornado consciência, o Ser já não é "totalmente si", mas uma "presença a", uma "distância a". Sua plena identidade cede lugar a uma relação - a relação que a consciência mantém de si para si mesma.

Sartre usa então a expressão Em-si para designar o Ser, compreendendo a realidade material, o mundo inorgânico dos objetos e o organismo humano: é porque o Ser está fechado em si, preso a si mesmo. O Em-si designa tudo o que existe, exceto a consciência humana. Sartre chama a consciência de Para-si, pois se trata de uma relação de si para si. O Para-si (expressão que define a consciência como distância ao Ser) sugere o que seria uma degeneração, uma "doença" do Ser": é o Ser que experimenta uma desorganização interna, rompe-se e se descola de si. O fenômeno metafísico da consciência representa o contrário do princípio da conservação da energia, no plano físico: se um único átomo que constitui o universo fosse destruído, seguir-se-ia uma catástrofe em cadeia que se estenderia à destruição da Terra e dos sistema solar.
Quando o Em-si se rompe para converter-se em Para-si, ocorre não a destruição, mas a "aparição" mesma do mundo: a consciência faz com que o mundo surja diante dela como existente.

Vimos que o Em-si não se reduz à sua aparição à consciência, não necessita do Para-si para existir, mas precisa do Para-si para existir enquanto aparição ou fenômeno (assim como não preciso de um espelho para existir, mas para aparecer a mim). A consciência é que faz com que o Ser "se mostre". Ela não cria o mundo: apenas o constata. Da mesma meneira, é a consciência que traz interrogações ao mundo e coloca os porquês. Sendo assim, não se pode saber com certeza por que há o Ser, ou por que o Para-si surge a partir do Em-si: as indagações desse tipo aparecem (já) com o Para-si. Quando interrogamos o Ser, ele já está aí, diante de nós. (O máximo que se pode dizer, em uma metáfora, é que o Em-si tenha se tornado consciência na tentativa de ser responsável pelo que é, ou seja, fundamento de si mesmo, causa de si, criador de si.)

BIBLIOGRAFIA

PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade. Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM. 1995, p.38 e 39.

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