21 de jun. de 2010

Temor e confiança co-existem

Sören Kierkegaard
Temor e Confiança co-existem

Soren Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês considerado fundador do existencialismo. Seus primeiros escritos tratavam dos temas de forma indireta, irônica, e ele os assinava com pseudônimos, às vezes assumindo posições contrárias às suas próprias para as colocar em evidência. Kierkegaard tinha duas metas filosóficas: afastar o cristianismo da tendência de aplicar o racionalismo aos problemas da fé e questionar as filosofias sistemáticas como a de Hegel.

Kierkegaard considerava errôneo e fútil a teoria hegeliana de que a natureza humana é conduzida pela necessidade histórica e o sistema filosófico abrangente que ele construiu para abrigá-la. A ambigüidade e a incerteza, argumentava ele, são essenciais à condição humana; o mundo é fundamentalmente absurdo, sem significado intrínseco. A existência é, portanto, assunto rigorosamente pessoal, uma questão de escolha e de responsabilidade individual que nenhum sistema lógico pode exprimir. Hegel procurava a objetividade perfeita, ao passo que Kierkegaard adotava a “verdade subjetiva”, afirmando que o entendimento pessoal, principalmente da religião revelada, é mais importante que a explicação racional.

Em Ou, ou e Temor e Tremor, ambos de 1843, Kierkegaard imaginou a existência humana em três esferas, ou estágios, os quais se pode escalar por intermédio do auto-exame: a vida estética, dominada pelos interesses mundanos; a vida ética, caracterizada pela atenção ao dever; e a vida religiosa, na qual se aceita totalmente o absurdo da existência e se assume um compromisso com a vida e com Deus. A fé e a obrigação religiosa, segundo ele, não podem ser justificadas pela razão, mas somente pelo “salto da fé”, como ilustra o relato bíblico da disposição de Abraão de sacrificar o filho Isaac por obediência incondicional a Deus. Essa fé livremente escolhida é muito mais autêntica do que a obediência cega aos dogmas.

Embora Kierkegaard quisesse defender o cristianismo e tivesse estudado para ingressar no clero luterano, essa análise não foi bem vista pela Igreja.

Em O Conceito de Angústia (1844) e O Desespero Humano (1849), respectivamente, Kierkegaard identificou duas situações humanas abrangentes que surgem na percepção de que a vida é absurda: angústia - a profunda ansiedade que sentimos perante o Nada, que só se pode remediar por meio de um compromisso consciente com a vida; e o desespero, que prevalece quando a pessoa não é capaz de assumir esse compromisso e cede à confusão do mundo.

Kierkegaard (2006), ainda em relação ao estádio estético.
(...) por uma parte a ausência de desejos, pela outra a submissão a todos os desejos, a embriaguez dos possíveis que deixa flutuar sem passar à realização de nenhum deles. Querendo tudo ao mesmo tempo, nada quer de fato, vagando em um labirinto onde o escolta e o segue o nada que ele pretenderia, no entanto, esconjurar.

Segundo Kierkegaard, viver nessa dimensão estética é viver por opção na superficialidade, sem a preocupação sobre as questões fundamentais da existência.

Na segunda a fase, a dimensão ética é a dimensão da liberdade. O filósofo analisa os alicerces da liberdade à luz da consciência individual, marcada pelo desespero humano que é uma característica essencial do ser humano. Para ele, o desespero é um sentimento que o homem experimenta em face da escolha de si mesmo.
Conforme Kierkegaard (2006), “é necessário não só querer, mas amar tornar-me eu mesmo, e isto implica cumprir humildemente o próprio dever, no quadro familiar do amor conjugal, na fidelidade resgatada dia após dia, que o hábito não enfraquece, mas aprofunda”. O estádio ético, ao contrário do estético, caracteriza-se pelo espírito de seriedade.

Na terminologia existencialista a palavra repetição foi introduzida pelo pensador para descrever a natureza da vida ética. Para esclarecer sua significação, aproximou-o da expressão aristotélica quod quid erat esse, que significa literalmente aquilo que o ser era, expressando, assim, a necessidade e a imutabilidade do ser; a sua repetição. Diferentemente da vida estética, que procura evitar a repetição, buscando novidades a todo instante (simbolizada, por exemplo, por Don Juan), a vida ética baseia-se na continuidade, na escolha repetida que o individuo faz de si mesmo e de sua tarefa, sendo, pois, simbolizada pelo matrimônio.

Já em Temor e Tremor, Kierkegaard serviu-se do episódio do sacrifício de Isaac, em Gênesis 22, para ilustrar o estádio religioso. Com Abraão estamos face a face com a apreensão, pela primeira vez, no nível do sujeito, da identidade propriamente dita. “Esta se conquista quando o sujeito se desapega das coordenadas do primeiro nascimento, quando se desprende da imediatidade natal, da família e da infância, das certezas adquiridas, em uma longa caminhada exodal para a promessa de si mesmo”.

Para Kierkegaard (2006), na visão judeu-cristã, o homem vai em busca de si mesmo, caminha para si mesmo, mediante a provação superada, que robustece sua liberdade, sua responsabilidade, seu senhorio e sua identidade. Se ele é bem sucedido, chega ao núcleo, ao próprio coração daquilo que condiciona a sua vida empírica: a pessoa, fonte transcendental de vida. Sempre que Deus "elege" um homem, submete-o a uma prova (Jó, Abraão, Jonas etc.) e, quando termina a prova, dá a ele um nome que comemora esta passagem e inaugura outra maneira de ser no mundo e em face de Deus: Abrão passa a ser Abraão, Jacó se torna Israel etc.

O texto kierkegaardiano nos apresenta a cena de uma experiência limite em relação com Deus, onde Abraão surge como a figura exemplar da fé, expressa através de duas noções aparentemente contraditórias: o temor e a confiança que co-existem, que se articulam.

Abraão sabe que do encontro com Deus nasce a vida. Ele o crê. Este drama é essencialmente um drama que não aconteceu. Todo o seu significado vem do fato de que Deus, pela intervenção de seu mensageiro, corrige a interpretação primeira que Abraão fizera de sua ordem. Ele surge então como um Deus que pede a vida, e não a morte, mas uma vida capaz de superação, de mortificação da tentação de tomar posse daquilo que Deus dá sem o restituir ao que o deu.

O imperativo "cada um se prove a si mesmo" é decisivo para Kierkegaard, visto que ele articula a imanência humana inicialmente vazia com a transcendência originária, exigindo de cada um o sacrifício da imediatidade como condição do nascimento para si mesmo como sujeito vivo.

Johannes de Silentio (um dos pseudônimos de Kierkegaard) mostra que, da mesma forma que Abraão foi provado sem ter cometido falta alguma, todo homem inocente pode ver uma força aterradora irromper em sua vida e lhe alterar de repente o curso. A desgraça ameaça virtualmente todo homem, e a angústia dessa possibilidade faz parte da vida como tal.

Em algumas de suas obras, o filósofo nos evidencia a necessidade de termos um compromisso existencial com a apropriação de nós mesmos; a apropriação da existência como existência. Existe, ainda, o dilema apresentado por Kierkegaard que consiste em: optar ou optar. Seja como for, o homem kierkegaardiano não pode subtrair-se a optar, pois não querer optar é ainda uma opção, a da má-fé, da trapaça com a vida.

Para Kierkegaard (2006) “Optar é a seriedade da vida e optar por Deus, eis a opção suprema. Neste nível se recebe de volta tudo aquilo a que se renunciara, mas revestido de outro significado”.

Enfim, sua obra procura mostrar o modo do homem se inter-relacionar consigo mesmo, como mundo e com Deus.

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4..ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

ROHMANN, Chris. O Livro das Idéias: um dicionário de teorias, conceitos, crenças e pensadores, que formam nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

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