20 de jun. de 2010

Macbeth nos Cem anos de solidão

Ajuntar fragmentos de duas obras não passou de uma brincadeira literária.
A primeira, Macbeth, de Shakespeare e, a segunda, Cem anos de solidão,
de Gabriel Garcia Márques.

Colocar em palavras os sofrimentos é muito benéfico mas, quando se guarda esses conteúdos por muito tempo, o resultado pode ser...


E tudo começou a muito tempo atrás...

Malcolm – Piedade, meu Deus! – Mas o que é isso, homem? Jamais cubra os olhos com seu chapéu. Ponha em palavras o seu sofrimento. A dor que não fala termina por sussurrar a um coração sobrecarregado, pedindo-lhe a explosão.

E, possivelmente, a Fernanda leu Macbeth.

(...) Continuou mais interessado na enciclopédia que no problema doméstico, mesmo quando teve de se contentar com uma pelanca ressecada e um pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não vai chover a vida inteira”. E quanto mais voltas adiava as urgências da despensa, mais intensa ia se fazendo a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, seus desabafos pouco freqüentes, transbordaram numa torrente desembestada, desatada, que começou certa manhã como o monótono bordão de um violão, e que à medida que o dia avançava foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não teve consciência da ladainha até o dia seguinte, depois do café da manhã, quando sentiu-se atordoado por um zumbido que era mais fluido e mais alto que o rumor da chuva, e era Fernanda que passeava pela casa inteira lamentando ter sido educada como uma rainha para acabar como mucama numa casa de loucos, com um marido folgazão, idólatra, libertino, que se deitava de barriga para cima esperando que chovessem pães do céu, enquanto ela destroncava os rins tratando de manter flutuando um lar que só se mantinha de pé com alfinetes, onde havia tanta coisa a ser feita, tanta a ser suportada e corrigida desde que Deus amanhecia até a hora de dormir, e que chegava na cama com os olhos cheios de pó de vidro, e no entanto ninguém nunca tinha lhe dado um bom dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda?, nem perguntado a ela, nem que fosse só por cortesia, por que estava tão pálida nem por que despertava com essas olheiras cor de violeta, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse do resto de uma família que, afinal de contas, sempre a teve como um estorvo, como o trapinho de segurar panela, como um boneco pintado na parede, e que sempre andavam fazendo futrica contra ela pelos cantos, chamando-a de santarrona, chamando-a de fariséia, chamando-a de boa bisca, e até Amaranta, que em paz descanse, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o cu com as têmporas, bendito seja Deus, que palavras, e ela havia agüentado tudo com resignação em nome do Santo Padre, mas não havia conseguido suportar mais quando o malvado do José Arcádio Segundo disse que a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma janotinha pedante, imagine só, uma janotinha mandona, valha-me Deus, uma filha de má saliva, da mesma índole dos pedantões que o governo mandou para matar trabalhadores, veja se é possível, e se referia a ninguém menos que ela, ela, a afilhada do Duque de Alba, uma dama com tanta estirpe que revolvia o fígado das esposas dos presidentes, uma filhod’alga de sangue como ela, que tinha direito de assinar onze sobrenomes peninsulares, e que era o único mortal naquela aldeia de bastardos que não se sentia atarantada diante de dezesseis talheres, para que depois o adúltero do seu marido dissesse, morrendo de rir, que tantas colheres e garfos, e tantas facas e colherinhas não eram coisa de cristãos e sim de centopéias, e a única que podia determinar de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado e em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e não como a troglodita da Amaranta, que em paz descanse, que achava que o vinho branco devia ser servido de dia e o tinto de noite, e a única em todo o litoral que podia se vangloriar de não ter feito nada do corpo que não fosse em peniquinhos de ouro, para que depois viesse o coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, e tivesse o atrevimento de perguntar com seu humor de fel de maçom de onde ela tinha merecido aquele privilégio, e se ela cagava merda ou bromélias celestiais, imaginem só, com essas palavras, e para que Renata, sua própria filha, que por indiscrição havia visto seus excrementos no quarto, respondesse que na verdade o peniquinho era de muito ouro e muita heráldica, mas que o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras porque era merda metida a besta, imaginem só, sua própria filha, de maneira que nunca tinha se deixado iludir com o resto da família...
Não a interrompeu até bem avançada a tarde, quando não conseguiu mais agüentar a ressonância de bumbo que atormentava sua cabeça.
– Agora cale essa boca, por favor – suplicou.

(...)

Eu não te disse!
Bom domingo.
Abs,
Cleiton.

BIBLIOGRAFIA

MÁRQUES, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno. 74. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. P. 356 a 360.

SHAKESPEARE, William. MACBETH. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2000. P. 108.

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