27 de jan. de 2011

Fragmentos literários: O homem da mão seca

O doutor ralhou comigo quando chamei minhas dificuldades de minhas doenças. É um processo, dona Antônia. Doença, processo, foi um estado de paralisia sufocante que me fez ir atrás de seus serviços. Me dei conta quando rezava: "Seja feita a Vossa vontade." Estranhei como nunca. Não. Isto, não. Maior que eu não dou conta de ser. Até então fora só lábios fluentes e a minha força, a força da minha língua guardando a culpa e o pecado como uma posse, um poder contra Ele. Foi Clara quem me instruiu sobre a coisa satânica. Não escrevo mais poéticas, não sou criatura, sou como Vós, lábios in-fluentes e língua sem força. Deus não é humano, Deus não sabe escrever, e eu que aprendi não queria fazê-lo, pois queria ser deus. Ele não sabe, faço por Ele, pratico o crime que à falta de outro nos redimirá aos dois de nossas tão diversas condições. Sim, sim, cada vez mais é assim que a compreendo, a vontade divina. Esta é a pobreza, a vontade divina governando minha vida. Pensamentos vêm aos borbotões: de que é em mim que Ele repousa seu Espírito, de que o bem compete a mim, ainda que Ele não peque, de que sou puro pecado e Ele sente culpa em mim, de que, como não me separo d´Ele hora nenhuma, fica parecendo que a culpa é minha, de que a quadratura do círculo é questão teológica, de que a física está prestes a intuir a Trindade, de que se não tivermos culpa real não há sentido em falar em salvação, de que sou deus, de que não sou deus, de que se o homem perder-se deus está perdido. Se "a criação foi sujeita à vaidade não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou", segue que Clara e o apóstolo Paulo estão dizendo a mesmíssima coisa. E mais: "Deus endurece a quem quer." Não sou eu quem o diz. "A carne não se submete à lei do Senhor; nem o pode." Se "o Espírito mesmo intercede por nós", Deus se salva a Si próprio quando me salva. Qual é meu pecado, então? A física entender a Trindade, Clara disse que vai demorar, porque agora é que chegamos ao telefone celular. E fax, que todo o mundo acha o máximo, é muito discursivo pra seu gosto. O que o homem faz é desinventar o mundo, criá-lo às avessas, o deusinho gabiru: pica,separa, corta, depois ajunta de novo e fala oooooh! Inventei o radar, chegamos ao periscópio, que parece uma pessoa muito alta na multidão virando o pescoço pra cá e pra lá, muito engraçado o periscópio, muito pobrezinho ele. Mas a visão já está inventada, e o que se vai ver, também. Tudo já está feito, o homem desfaz, pensando que faz, para ver o já feito. Vamos acabar com a canseira de preservar as graminhas e a floresta amazônica, vamos direto ao assunto: a culpa é nossa mesmo. Jesus, o pobre de Yahvé, é nos relatos quase impaciente. Não se precisa ir a inaugurações e responder cartas. Já está tudo perfeito, nada mais a fazer. (PRADO, p.57,58)

PRADO, Adélia. O homem da mão seca. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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