12 de dez. de 2010

Fragmentos literários: Gula

O Clube dos Anjos

(...)

Memorável paella. Precedida de brindes com champanha ao Ramos e ao Abel e de vieiras com uma delicada musse de salmão. Estávamos todos eufóricos, apesar da morte do Abel. O primeiro jantar do Lucídio nos convencera que o Clube do Picadinho podia ser salvo pelo apetite, mesmo que não nos amássemos mais como antigamente e tivéssemos jogado fora as nossas vidas. Não se falou no Abel durante o jantar. Abel tinha sido restituído aos santos da sua família, nos cabia preservar o que ainda estava vivo entre nós, o que fora salvo do naufrágio. A nossa afinidade animal, a nossa fome em bando, desde o tempo em que roncávamos juntos, como porcos, ao mastigar o picadinho do Alberi. Só nos restara a fome em comum. Eu não parava de falar, mesmo com a boca cheia. André repetia que sentia sua mulher não estar ali, ela tinha sangue espanhol, o que não diria daquela paella diferente? Até o João dizer que cortar as mulheres dos jantares tinha sido uma grande decisão. Uma sábia decisão. As mulheres eram as responsáveis pelo nosso declínio. As mulheres tinham nos arrancado do paraíso, sem elas nossos rituais readquiriam sua pureza adolescente, éramos de novo os porcos contentes do bar do Alberi.

Quando Lucídio trouxe a segunda panela de paella com os grande bulbos de alho dispostos em círculo na borda, foi recebido com urros de reconhecimento. Ele era o responsável pela nossa ressurreição. André ainda tentou  protestar, sem muita convicção. A Bitinha merecia estar ali, ela que amava paellas, que era uma estudiosa de paellas. Seu protesto foi sepultado sob os nossos roncos ferozes. Eu lembrei o Discurso  do Cio que o Ramos fizera, na hora do conhaque, depois de um memorável jantar com trufas. Devemos as trufas e a civilização ao cio das fêmeas, dissera Ramos, erguendo seu copo e propondo um brinde às fêmeas e às suas glândulas. As trufas cheiravam a um hormônio do porco, e as porcas no cio as localizavam e desenterravam, freneticamente, atrás do amor.
"Em vez de um marido, encontraram uma espécie de nódulo vegetal, como acontece com muitas moças hoje em dia", dissera Ramos. As maravilhosas trufas que tínhamos comido eram o produto da frustração amorosa de porcas anônimas. Todo o prazer gastronômico era uma forma de cooptação do cio, segundo Ramos. Interrompemos um processo orgânico da planta ou do bicho para comê-los e gastamos a nossa própria voluptuosidade, o nosso cio desgarrado, no prazer de comer. (VERÍSSIMO, 1998, p.53,54)

VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Clube dos Anjos - Gula. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

* Uma deliciosa opção!

Um comentário:

Anônimo disse...

É meu caro amigo ainda a muito que trilhar em aprendizado...Tomara chegar a este ponto.