25 de jul. de 2010

"Atmosfera" de alerta.

(...) Sem memória e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.

É claro que nada disto era absoluto. Pois se é verdade que todos os separados chegaram a esse estado, é justo acrescentar que não chegaram todos ao mesmo tempo e que, da mesma forma, uma vez instalados nessa nova atitude, lampejos, retrocessos, bruscos estados de lucidez levavam os pacientes a uma sensibilidade mais nova e mais dolorosa. Eram necessários para isso momentos de distração, em que eles formavam algum projeto que implicava o fim da peste. Era preciso que eles sentissem, inopinadamente e por efeito de alguma graça, a mordida de um ciúme sem objeto. Outros encontravam também renascimentos súbitos, saíam do seu torpor em certos dias da semana, no domingo, naturalmente, e aos sábados à tarde, porque esses dias eram consagrados a certos ritos, do tempo do ausente. Ou, então, uma certa melancolia que os invadia ao fim da tarde dava-lhes o aviso, alias nem sempre confirmado, de que a memória ia voltar. Essa hora da tarde, que para os crentes é a do exame de consciência, é dura para o prisioneiro ou o exilado que só pode examinar o vácuo. Ela mantinha-os suspensos por um momento; depois, voltavam à atonia, encerravam-se na peste.

Já se compreendeu que isso consistia em renunciarem ao que tinham de mais pessoal. Ao passo que nos primeiros tempos da peste eles se surpreendiam com a quantidade de pequenas coisas que contavam muito para eles, sem terem qualquer existência para os outros, e faziam assim a experiência da vida pessoal, agora, pelo contrário, só se interessavam por aquilo que interessava aos outros, já não tinham senão idéias gerais e o seu próprio amor assumira para eles a forma mais abstrata. Estavam a tal ponto abandonados à peste que lhes acontecia às vezes só desejarem o sono e surpreenderem-se a pensar: “Que venham logo os tumores e se acabe com isto!” Mas, na realidade, já estavam dormindo e todo este tempo não foi mais que um longo sono. A cidade estava povoada por sonolentos acordados que só escapavam realmente ao seu destino nos raros momentos em que, de noite, a sua ferida aparentemente fechada se reabria bruscamente. E, despertados em sobressalto, apalpavam então, distraídos, os bordos irritados dessa ferida, redescobrindo num lampejo o seu sofrimento, subitamente rejuvenescido e, com ele, a imagem perturbada do seu amor. De manhã, voltavam ao flagelo, quer dizer, à rotina. (CAMUS, 2004, p. 161-162)

(...)

CAMUS, Albert. A Peste. Tradução: Valerie Rumjanek. 15.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004


(+) Dica: Existe uma dissertação de mestrado com o título: O SENTIDO DO EXÍLIO EM LA PESTE DE ALBERT CAMUS, disponível na internet. A autora se chama Cristianne Aparecida Lameirinha  -  São Paulo, Dezembro de 2006.

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